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A humanização dos processos migratórios

O deslocamento de pessoas pelo espaço geográfico, de forma temporária ou permanente, é parte intrínseca da história da humanidade. Não é um fenômeno, uma ação esporádica, algo externo. É um processo constitutivo. A visão desse vai-e-vem é estratégica para compreendermos as mais variadas realidades e transformações sociais.

Dados da Organização Internacional para as Migrações (OIM) mostram que, entre 1970 e 2019, o número estimado de imigrantes pelo mundo passou de 85 milhões para 272 milhões de pessoas, aproximadamente. Tal quantidade já superou as projeções feitas para o ano de 2050, que estimavam algo em torno de 230 milhões de pessoas vivendo fora de seus locais de origem. Na região da América Latina e Caribe, dados de 2017 mostram que 37 milhões de pessoas viviam fora de seus países, enquanto que, na virada do século, o continente registrava 5,9 milhões de imigrantes.

Entre tantos números, é curioso perceber dois aspectos bem pontuais. O primeiro é que os atuais 272 milhões de deslocados correspondem a apenas 3,5% da população do planeta. No caso da América Latina e Caribe, o número de emigrantes corresponde a 6,21% da população, se levarmos em conta a quantidade de habitantes do continente em 2010 que era de 596,2 milhões, segundo a Comissão Econômica para América Latina e Caribe da ONU (Cepal). Já o de imigrantes atinge 1% da população, arredondando para cima.

O segundo é que, mesmo com dados estatísticos considerados baixos frente a tantos problemas que assolam o mundo, o impacto dos deslocamentos humanos é inegável no imaginário social e na própria cobertura midiática. Há sempre uma opinião formada e, via de regra, polêmica e intransigente, sobre o fluxo de imigrantes venezuelanos para a Colômbia, ou mesmo para o Brasil (via Pacaraima), intensificado desde 2015; sobre a separação de pais e filhos de imigrantes latinos no auge do governo Donald Trump e, as caravanas de pessoas oriundas de El Salvador, Nicarágua Guatemala rumo à fronteira do México com os Estados Unidos, em 2019. Apenas para citar casos recentes de grande repercussão envolvendo nosso continente.

Os impactos multidimensionais das migrações

O fato é que a importância das migrações internacionais não está nos números, mas reside, principalmente, nas consequências políticas, econômicas, sociais e culturais que geram, seja nos países de origem, seja nos de destino ou ainda em países de trânsito. E isso pode estar relacionado à maneira como enxergamos os processos migratórios, pelo menos no mundo ocidental, desde o período pós-revolução industrial: a partir do viés econômico e demográfico. Não é coincidência que o registro do primeiro estudo sistemático migratório reconhecido seja, justamente, uma análise feita por Ernst Georg Ravenstein, em 1885, sobre a supremacia econômica determinante na migração no Reino Unido baseada em resultados do censo da época.

Assim, a relação do imigrante com a economia e suas teorias neoclássicas, combinada com as  estatísticas demográficas e com o próprio fortalecimento da ideia de Estado-nação como um modo de “organização natural” do planeta passou a enquadrar o imigrante no universo do trabalho e da mão de obra. Por isso, o sociólogo argelino Abdelmalek Sayad, um dos maiores estudiosos sobre a temática migratória, considera uma redundância falar de “migrante trabalhador”. Segundo diz em sua obra “A imigração ou os paradoxos da alteridade”, “o migrante é, essencialmente, uma força de trabalho”. Importante destacar que sempre houve uma preocupação com justiça, na perspectiva do Direito Internacional, ou mesmo dos Direitos Humanos, despertando olhares para essas questões, mas, especialmente nesta última área, tudo, muito embrionário, ainda.

Avanços e tarefas pendentes respeito ao tratamento das migrações

A verdade é que a própria realidade vem escancarando a complexidade dos deslocamentos humanos, impondo a necessidade e a urgência de se entender os fluxos migratórios para, muito além das questões econômicas ou dados estatísticos. Nesse sentido, é célebre a frase do sociólogo suíço Max Frisch: “Nós queríamos trabalhadores e recebemos pessoas”. Assim, o olhar para a questão precisa ganhar outros vieses, evidenciando a multiplicidade de interações sociais, simbólicas e culturais dos processos.

Há avanços significativos nesses aspectos. Das próprias visões que previam a assimilação e a aculturação do estrangeiro no novo território, hoje muito já se observa e se fala sobre interação, integração, acolhida, interseccionalidades. Há estudos avançados sobre redes migratórias, fronteiras, desterritorialização, transnacionalismo, interculturalidade, entre outras questões que se impõem como processos de diálogo constantes, em que a diversidade de perspectivas é garantida na compreensão da mobilidade humana.

Há transformações ainda nos olhares sobre as personagens constitutivas dos fluxos migratórios, como o papel da mulher e da família, dos descendentes e das gerações seguintes. Chama a atenção, também, a preocupação para temáticas como retorno, tráfico e contrabando de pessoas, dupla ou tripla pertença jurídica, além de pontos que requerem maior sensibilidade, como transformações identitárias, pertencimentos religiosos e culturais, distúrbios e traumas psicológicos etc.

Não se trata de números e, sim, de pessoas, logo, a migração não pode ficar limitada a conteúdos econômicos ou estatísticos que se prestam a conclusões definitivas. Humanizar os processos migratórios é urgente. Afinal, migrar não é chegar. É caminhar.

Foto de rawEarth em Foter.com

Autor

Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ e docente pesquisadora da Univ. Metodista de São Paulo, no programa de pós-graduação em Comunicação. Coordenadora da plataforma de dados Brasileiros no exterior: https://www.brasileirosnoexterior.org

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