Nove em cada dez pessoas nos países em desenvolvimento não receberão a vacina covid-19 em 2021. Esta constatação é a voz alarmante de vários setores que têm apoiado o pedido de liberação temporária dos direitos de propriedade intelectual das vacinas para imunizar a população mundial contra o vírus da covid-19.
De acordo com informações da Organização Mundial da Saúde, em 19 de abril, o mundo tinha mais de 140 milhões de casos de contágio da covid-19 e três milhões de mortes. Destas últimas, quase metade ocorreram nas Américas, com os Estados Unidos (561.611 mortes), Brasil (371.678) e México (212.228) na liderança. Ao mesmo tempo, 792.796.083 doses de vacinas foram administradas para combater o vírus, o que equivale a mais de um em cada dez habitantes do mundo. Mas o quadro fica pior quando se observa como estas doses foram distribuídas.
Segundo o Diretor-Geral da OMS, 87% das doses foram administradas nos países ricos, enquanto 0,2% da população dos países de baixa renda receberam algumas doses. A América Latina, que estipula precisar de 500 milhões de doses para imunizar sua população, receberá – através da Covax – pouco menos de 380.000 doses até o final de abril. Apenas alguns países têm um nível superior a 10% de sua população com pelo menos uma dose: Chile (66,58 doses por 100 habitantes), Uruguai (36,48), Brasil (15,24), Argentina (13,48) e Panamá (12,7). Enquanto isso, países como Nicarágua, Guatemala e Honduras não chegam nem a 1 dose por 100 habitantes.
O mundo não só precisa de uma maior produção de doses, mas também que elas cheguem a todos os cantos do planeta, ao mesmo tempo e em condições tais que tornem eficaz a imunização de toda a população. Neste sentido, o Acesso Conjunto a Tecnologias contra a Covid-19 (C-TAP), lançado pela OMS juntamente com o governo da Costa Rica e co-patrocinado por outros 40 Estados reunidos na Chamada para Ação Colaborativa, está posicionado como uma opção promissora.
Este apelo insta os governos, organizações financiadoras, empresas e a comunidade científica a compartilhar voluntariamente conhecimentos, propriedade intelectual e dados relacionados à tecnologia de saúde covid-19. Apesar de sua eventual utilidade na esfera econômica e sanitária, mas também para a governança internacional, até o momento, nenhuma empresa farmacêutica que tenha aprovado qualquer uma das vacinas para combater a pandemia aderiu a este mecanismo.
Por outro lado, a Índia e a África do Sul iniciaram um processo na OMC para solicitar isenção de certas disposições do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o comércio para a prevenção, contenção e tratamento da covid-19. O pequeno grupo de países ricos que lideram o mundo na vacinação se opõe: os Estados Unidos, o Reino Unido, a Suíça e a própria União Europeia.
Não é difícil desvendar os interesses por trás desse posicionamento. Por exemplo, das 10 empresas farmacêuticas mais valorizadas do mundo em 2019, cinco são americanas (Pfizer, Abbott, Merck, Celgene e Abbvie), duas suíças (Roche e Novartis), uma alemã (Bayer), uma francesa (Sanofi) e uma inglesa (Gsk). Ao mesmo tempo, um estudo recente publicado no The Lancet mostra que o setor público e a filantropia – com a Fundação Bill e Melinda Gates à frente – contribuíram com pelo menos mais de 10 bilhões de dólares para a pesquisa e desenvolvimento de vacinas contra a covid-19.
Mais de 83% desse financiamento foi concentrado em cinco vacinas cujo denominador comum é a presença do governo dos EUA como financiador em todas elas. A isto se soma o estudo que confirma, no caso da vacina AstraZeneca, que a indústria farmacêutica contribuiu com apenas 3% dos 120 milhões de euros investidos em seu desenvolvimento.
Recentemente, um grupo de ex-presidentes e ganhadores do Nobel instou o atual presidente dos Estados Unidos a apoiar a suspensão dos direitos de propriedade intelectual para a produção de vacinas contra a covid-19. A isto se somam os resultados de uma pesquisa no mesmo país, na qual 60% das pessoas consultadas – de diferentes orientações ideológicas – expressaram sua concordância com tal suspensão. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, juntamente com o Escritório do Relator Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais e o Escritório do Relator Especial para a Liberdade de Expressão, expressaram a mesma opinião.
Um dos principais argumentos contra a liberalização dos direitos de propriedade intelectual sobre vacinas reside no fato de que as vacinas – e, em última análise, a saúde – são consideradas um bem de consumo. Entretanto, a vacina da covid-19 deve ser considerada um bem público global, como declarado pelo Secretário Geral da ONU. Seguindo esta premissa e sob o slogan “a vacina dos povos” é que as personalidades internacionais urgem por uma produção maciça e disponível para todo mundo, de todos os países e gratuita.
Agora, em um mundo em que reina o “salve-se quem puder” – onde primeiro, obviamente, se salvam os mais ricos – por que devemos esperar que as grandes empresas farmacêuticas atuem de forma colaborativa e solidária? Há também um ponto de interrogação sobre o papel e o que se pode esperar de fundações filantrópicas, como a Fundação Bill e Melinda Gates, que financiaram bilhões de dólares para o desenvolvimento de vacinas.
A responsabilidade pelo que é feito ou não feito, bem como a viabilidade de mudar o curso da pandemia, permanece com os Estados e sua capacidade de dar sentido – e conteúdo – aos mecanismos globais de colaboração, tais como Covax e C-TAP. Estes devem contar com um consenso global sobre a importância de salvaguardar a vida dos habitantes do planeta sobre a manutenção das regras do mercado.
*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima
Autor
Cientista político. Professor da Universidade de Buenos Aires (UBA). Doutor em Política e Instituições pela Università Cattolica del Sacro Cuore (Milán). Professor de pós-graduação na UBA e na Univ. Nacional de Lanús. Presidente da Asuntos del Sur.