Co-autora Mariana Chaguri
Além de contratempos de reorganização das interações e perdas inestimáveis de vidas, a Covid-19 trouxe um revés particular ao interior das comunidades acadêmicas: o aumento das desigualdades. Alterações nos locais de trabalho, impedimentos de circulação, cancelamento de eventos científicos, adiamento de concursos e editais de pesquisa, são alguns dos fatores que podem ser salientados na conjuntura global. Associado a isso, em países como o Brasil, uma política de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) baseada no desfinanciamento, no assédio institucional e na deslegitimação do conhecimento científico aprofundaram disparidades previamente existentes e tornaram mais incertos os futuros profissionais de gerações recém egressas do ensino superior. Abordamos aqui danos que podem prejudicar a produção intelectual nas Ciências Sociais.
Áreas de pesquisa
Embora a maioria dos cientistas declare ter sentido impactos negativos da pandemia nas rotinas de pesquisa, há discrepâncias de acordo com variadas características sociais. A primeira a ser ressaltada diz respeito à disciplina de atuação. Se tomamos as Ciências Sociais como parâmetro, artigos sinalizam que antropólogos(as) perceberam mais prejuízos na condução de investigações do que sociólogos(as) e cientistas políticos(as), algo manifesto também em dados sobre produtividade. Os maiores inconvenientes à Antropologia estão relacionados aos métodos de pesquisa predominantes na área, que foram severamente embarreirados pelas medidas de quarentena, como as pesquisas de campo, as etnografias e as observações participantes.
Isso não significa que cientistas políticos e sociólogos não tenham experimentado dificuldades, mas sim que elas obtiveram intensidades diferenciadas e atributos que precisam ser conhecidos a fundo para que possamos pensar em soluções coletivas sensíveis às especificidades. O fato de antropólogos relatarem mais entraves no período recente não traz somente um problema de distinção interno às Ciências Sociais. Indica, ademais, uma consequência que é especialmente ruim para as mulheres. Em relação ao trio Ciência Política, Sociologia e Antropologia, a última concentra a maior proporção do gênero feminino em cargos de docência e pesquisa, como estatísticas relativas às universidades brasileiras demonstram.
As mulheres
Se as metodologias mais tradicionais de pesquisa em cada campo do conhecimento induziram a maiores ou menores penalizações às rotinas de trabalho durante a pandemia, esse não é o único item determinante nas assimetrias que se asseveraram nos últimos anos. As mulheres compõem um dos grupos sociais que, independentemente da disciplina de concentração, sofreram com as imensas mudanças nas condições de exercício da profissão de pesquisador(a).
A transferência do regime presencial para o trabalho remoto ocasionou às mulheres maior exaustão e dificuldade de manter a produtividade frente à sobrecarga com as atividades domésticas e de cuidado. A disparidade de divisão de tempo entre os gêneros é um fenômeno conhecido de longa data por pesquisadores(as) de desigualdades. Com a crise da Covid-19, por sua vez, a repercussão de tais dinâmicas assimétricas provocou mais obstruções à construção de igualdade na produção científica.
Nas Ciências Sociais, é possível apontar que as mulheres foram duplamente castigadas na Antropologia, seja por serem maioria na área e terem tido que enfrentar mais obstáculos à condução de seus métodos de pesquisa, seja por estarem abarrotadas pelo trabalho de cuidado. Isto implicará um regresso na condição de maior igualdade que a disciplina sustentava. Na Sociologia, é possível conjecturar sobre a perda de certo equilíbrio que existia entre homens e mulheres. E, por fim, na Ciência Política, que já obtinha maioria do gênero masculino, é possível que encaremos ainda mais desigualdades.
A população negra
A área de trabalho e o gênero de seus pesquisadores revelam adversidades específicas. O mesmo ocorre com a variável “raça”. Em diversas partes do mundo, as pessoas brancas são as que mais lideram pesquisas e ocupam posições institucionais de poder, assumindo prevalência nos variados campos científicos. Os negros, por outro lado, costumam ser minoria na produção de conhecimento e terem empecilhos singulares para a inserção na carreira de cientista.
Vale pontuar que “raça” é uma dimensão tão relevante quanto “gênero” para estimar desigualdades. Mas as complicações para lidar com essa esfera de assimetrias da vida social são muitas. Há diferenças consistentes em como aferir tal variável em distintas localidades do globo. E, muitas vezes, há também a própria desconsideração de sua importância. No Brasil, por exemplo, a tentativa de levantar a discussão das desigualdades raciais entre os cientistas sociais esbarra na falta de obrigatoriedade de coleta de informações sobre autodeclaração nos sistemas de avaliação de pesquisas, assim como na ausência de transparência dos órgãos públicos.
No contexto de pandemia, minorias em desvantagem vêm acumulando mais infortúnios e limitações para persistir na consolidação de trajetórias na academia. Esse âmbito de trabalho exige dedicação de longo prazo e é, portanto, mais difícil àqueles que não provêm de classes sociais abastadas ou privilegiadas simbolicamente na sociedade.
As gerações
Comunidades científicas são multigeracionais e o aprendizado entre pesquisadores em distintos estágios de carreira é marca fundamental da produção e do avanço do conhecimento especializado. Enquanto as desigualdades de gênero e raça já eram conhecidas nos meios acadêmicos, as gerações em formação ou tituladas em períodos próximos ou em meio à pandemia se defrontaram com aspectos até então inimagináveis, como a falta de convivência presencial em aulas e eventos, que facilitava a criação de redes, ou a perda de espaços usuais de estudo e desenvolvimento profissional. Os efeitos da pandemia associados a uma política de CT&I indutora de desigualdades abrem um horizonte difícil para grupos geracionais especialmente atingidos por cortes no financiamento de pesquisas e pela inserção precarizada em atividades profissionais, sejam ligadas à carreira científica ou não.
As Ciências Sociais e a importância da diversidade
A igualdade na ciência perdura sendo um ideal normativo distante, mas foi a partir dele que discussões antes pouco prováveis passaram a tomar os espaços públicos. Foi a chegada de mulheres que trouxe o feminismo e as análises de gênero à academia. Foi a presença de mais negros nas universidades que tencionou a primazia da branquitude como única amostra da intelectualidade nas humanidades. E foi sempre a partir da juventude que o “novo” pode surgir e dar continuidade transformada às tradições. As Ciências Sociais precisam da diversidade para contribuir às pessoas com todas as suas potencialidades.
Área de pesquisa, gênero, raça e geração são marcadores sociais que orientam desafios generalizáveis à produção científica, particularmente visíveis e potencializados durante a pandemia. Em cada um desses modos de distinção na sociedade, há impactos variáveis, com alguns grupos sendo mais afetados que outros. Num cenário de aprofundamento das desigualdades e da consequente limitação da diversidade, cabe aos cientistas sociais ponderar os caminhos tortuosos de futuro que se avistam para a comunidade se a pluralidade de seus atores vier a regredir.
Mariana Chaguri é Professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp. Atualmente é secretária-executiva da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) onde desenvolve, entre outros, a pesquisa “Futuros do Trabalho nas Ciências Sociais”.
Autor
Doutora em Ciência Política pelo IESP/UERJ, com estágio de pesquisa na Universidade de Cambridge. Pesquisadora de pós-doutorado no Instituto Serrapilheira (Rio de Janeiro).