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A  crise da Ucrania e o pesadelo ocidental

Em 1904, o geógrafo britânico Sir Halford Mackinder apresentou o estudo The Geographical Pivot of History, que teve um grande impacto na análise e pensamento geopolítico até aos dias de hoje. Mackinder sugeria que a supremacia do Império Britânico estava em perigo por parte de Estados com a capacidade real de controlar um continente. Referia-se aos Estados Unidos e ao Império Russo. No que diz respeito ao primeiro, ambas as potências conseguiram um equilíbrio cedendo aos EUA a hegemonia do que consideravam o seu espaço vital – o continente americano – no marco da Doutrina Monroe. O Império Britânico relegava assim este espaço para se concentrar no conflito sul-africano mas, sobretudo, no continente euroasiático, visto por Mackinder como central para o poder global. A “Ilha do Mundo”, como denominava o geógrafo, era considerada um pivô central, o heartland que se estendia desde a Sibéria até à atual Ucrânia.

A Grã-Bretanha vinha combinando o controle dos mares com ser a primeira potência industrial para impor a sua hegemonia sobre o sistema global sem ser uma potência continental. O ponto de vista de Mackinder era que isto era possível se não surgisse nenhuma potência alternativa que conseguisse controlar a “ilha (continental) do mundo”.

As teses de Mackinder não eram de todo novas, mas sim colocavam um marco racional e geopolítico (embora não tenha usado essa palavra) sobre o que já era um modus operandi do Império Britânico. Um desafio continental ao Império Britânico veio da França Napoleônica e da sua tentativa de criar um “sistema continental”, tentando incluir a Rússia pela força.

O confronto franco-russo foi um grande feito britânico, cujo apoio à Rússia impediu o surgimento de um potente rival euroasiático. Pouco mais de um século depois, a ameaça continental regressou no pacto Molotov-Ribbentrop entre a Alemanha e a União Soviética. Esta poderia ter sido uma séria ameaça continental à aliança talassocrática britânico-estadounidense. Mas nem a geopolítica nem as lições do passado prevaleceram na Alemanha. Novamente se quebrou a frente continental e foi a Rússia (agora a União Soviética) que mais uma vez salvou as potências talassocráticas.

No confronto da Guerra Fria, a URSS retomou ao objetivo de construir uma plataforma euroasiática através da qual pudesse alcançar projeção global. Tinha o controle do heartland, mas isto não era suficiente, por isso procurou uma aliança com o novo Estado comunista que se constituía a partir de 1949, a República Popular da China. No entanto, esta aliança não alcançou uma força decisiva, uma vez que a China estava enormemente debilitada por décadas de guerra e perda territorial.

Embora a União Soviética tivesse um poder de alcance global, não alcançava uma posição de liderança em termos econômicos e tecnológicos frente aos EUA e seus aliados. Em outras palavras, havia uma frente continental debilitada. Assim, apesar da derrota fatal na Guerra do Vietnã, os EUA atingiram um objetivo estratégico em termos de geopolítica global: a dissolução da aliança sino-soviética em 1972. Mais uma vez, a potência tálassocrática conseguiu respirar graças ao enfraquecimento da alternativa euroasiática, que se foi desvanecendo ainda mais com o colapso da URSS.

Mas o sonho euroasiático foi reavivado pelo novo Estado Russo, que, sob a liderança de Vladimir Vladimirovich Putin, institucionalizou-o na criação da União Euroasiática, uma união aduaneira entre a Bielorrússia, o Cazaquistão e a Rússia. Naturalmente, o nome não corresponde ao conteúdo. Embora a Rússia continue a ser uma potência militar, está muito longe da antiga força política, econômica e mesmo territorial da URSS.

É aqui que, ao entrarmos no século XXI, nos deparamos com o ressurgimento de outra potência euroasiática, a República Popular da China, já desconectada da aliança com os EUA e com uma agenda geopolítica própria. Esta tem elementos que nunca foram alcançados pela Rússia (nem mesmo na sua era soviética) ou por qualquer outra potência euroasiática continental. Por um lado, ter uma economia de alcance global com potencial para ser a primeira economia do mundo. A presença da China na América Latina é um bom exemplo disso, desafiando o espaço comercial estadounidense e ocidental como ninguém antes. O outro elemento é estar na vanguarda na área tecnológica, como é com o novo padrão 5G nas telecomunicações.

Esta aliança renovada China-Rússia é, sem dúvida, um pesadelo mackinderiano para a atual potência tálassocrática e seus aliados. O desafio russo à ordem de segurança da Europa Ocidental que agora vemos no conflito da Ucrânia seria impossível sem esta aliança euro-asiática. O comércio bilateral entre a China e a Rússia duplicou entre 2013 e 2021, o que para a Rússia significa um aumento na proporção da China em seu comércio exterior de 10 a 20 por cento.  

Mas a ambição é muito maior, já foi anunciada uma profunda estratégia de integração regional em direção àquilo que denominam a “Grande Associação Euro-asiática”. Isto significa um entrelaçamento da União Euro-asiática dirigida pela Rússia com a “Iniciativa do Cinturão e Rota” promovida pela China. Acrescente-se a isto as conexões que, ao mesmo tempo da crise da Ucrânia, estão se estabelecendo entre o espaço sino-russo com o Irã e a Índia, que desempenhará um papel fundamental na composição do tabuleiro geopolítico euro-asiático e global.

Se este espaço continental continuar se consolidando, não significaria apenas a alternativa de uma potência continental sem precedentes no espaço euro-asiático. Seria também a primeira vez uma potência deste tipo teria um verdadeiro peso global, tanto militar como (aqui está a novidade) econômico. A Rússia determina um peso decisivo no primeiro, a China no segundo.

Sem dúvida, o conflito na Ucrânia antagoniza a Rússia com a Europa Ocidental e os EUA, mas a partir do tabuleiro global a união euro-asiática está ganhando força. O efeito já é visível, e será ainda mais na América Latina, que passará a desempenhar um papel de maior importância por seus recursos naturais, pelo poder de consumo da sua população e por ser parte do heartland dos EUA.

O destino da Ucrânia é um aviso aos países frágeis que andem sozinhos pelo mundo. A Rússia não hesita em intervir e, para além de muita retórica, não há tropas ocidentais dando assistência aos ucranianos. Confrontar as grandes potências em conjunto deveria ser um imperativo de segurança para os países latino-americanos.

*Tradução do espanhol por Giulia Gaspar.

Autor

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Historiador econômico e professor sênior de Estudos Latino-Americanos no Instituto Nórdico de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Estocolmo. Pesquisa questões de geopolítica e desenvolvimento.

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