Co-autor Adrián Albala
Desde o retorno à democracia em 1985, o Brasil teve dois presidentes afastados por impeachment. Além disso, o país vem experimentando acelerada erosão da autoridade presidencial nos últimos anos, em meio a um cenário de permanente instabilidade política. Diante deste quadro, a adoção do semipresidencialismo vem sendo aventada como uma reforma capaz de minorar as deficiências do modelo de presidencialismo coalizão, garantindo mas governabilidade, governança e estabilidade política.
Em um regime semipresidencialista, em tese, a existência de uma chefia de governo exercida por um primeiro-ministro dependente da confiança da coalizão governista garantiria maior responsabilização política dos partidos. Ademais, a facilidade de substituição do primeiro-ministro, bastando para isso um voto de desconfiança, contribuiria para resolver rapidamente situações crise e impasse político entre os Poderes Executivo e Legislativo. Em outras palavras, esse sistema evitaria o longo e traumático processo de impeachment, o único método possível de substituição do chefe de governo no presidencialismo no período entre as eleições.
Em contraponto a esses argumentos otimistas, que têm sido apresentados por lideranças partidárias, ministros do STF e alguns cientistas políticos, sugerimos que é preciso considerar os riscos embutidos na mudança do sistema de governo. A nosso ver, a adoção do semipresidencialismo não resolveria o principal defeito do mix institucional brasileiro: a persistente divergência entre os resultados das eleições presidenciais e congressuais.
De fato, mesmo quando eleitos com ampla maioria do voto popular, os presidentes iniciam seus mandatos contando com bases partidárias diminutas nas duas casas do Congresso. Por isso, os presidentes precisam recorrer à formação de coalizões amplas e, não raro, ideologicamente heterogêneas. Esse processo geralmente se inicia já no período pré-eleitoral com a formação de grandes coligações.
Mantidas estas características, a adoção do semipresidencialismo obrigaria os presidentes a nomear, via de regra, primeiros-ministros de outros partidos, ou mesmo de partidos ideologicamente distantes, o que por sua vez poderia levar conflitos intra-coalizão para dentro do Executivo. No pior cenário, teríamos a situação de coabitação, em que um presidente minoritário é obrigado a conviver com um primeiro-ministro de oposição e um gabinete no qual o partido do presidente não está representado.
Cabe notar, porém, que mesmo quando não se verifica coabitação, não está afastada a hipótese de competição e conflito. Por exemplo, entre um primeiro-ministro que decide usar a visibilidade do cargo para concorrer no próximo pleito contra um presidente que é candidato à reeleição. Em outras palavras, os conflitos recentes que observamos entre presidentes e vice-presidentes seriam transportado para dentro do próprio governo, produzindo um Executivo bicéfalo.
Essa situação é relativamente comum na França, por exemplo, onde nos últimos anos tem se observado cenários de competição entre o presidente e primeiro-ministro: por exemplo, entre Hollande e Valls, ou entre Sarkozy e Fillon. Note-se que nesses casos o presidente e o premier eram, inclusive, do mesmo partido.
Há dois grandes modelos de semipresidencialismo : o formato em que o primeiro-ministro e a maioria legislativa são dominantes -“premiê-presidencialista”-, como na Irlanda e Portugal; e o formato em que o presidente é dominante “presidente-parlamentarista”, como na França, no Peru, e alguns países do Leste Europeu. No primeiro caso, o presidente tem o poder de nomear o primeiro-ministro, mas não tem o poder de demiti-lo e derrubar o gabinete. No segundo caso, a prerrogativa de demitir o primeiro-ministro e o gabinete é partilhada entre o presidente e o parlamento, tendo o presidente ainda (em muitos casos) a possibilidade de dissolver o parlamento.
Essa diferença de formato tem implicações sobre o desempenho e o comportamento do governo. Assim, no primeiro modelo o gabinete depende apenas da sua base parlamentar, enquanto no segundo caso há uma dupla dependência, o que pode levar a sucessivas substituições na chefia de governo o e instabilidade governamental, como tem ocorrido na Ucrânia e Romênia. Não surpreende, então, que os semipresidencialismos no formato “premiê-presidencialista” tendam a funcionar melhor. De fato, o sistema com presidente dominante possui uma tendência intrínseca ao conflito intragovernamental.
O conflituosidade do sistema semipresidencialista
O grau de conflituosidade do sistema semipresidencialista também pode ser influenciado pela extensão dos poderes legislativos do presidente. No cenário de coabitação, por exemplo, um presidente com poderes de veto, decreto e iniciativa exclusiva pode ser valer das suas prerrogativas constitucionais para dificultar a implementação da agenda do governo.
A literatura comparada demonstra, de fato, que países semipresidencialistas com presidentes dotados de amplos poderes legislativos experimentam conflitos intra-executivo com maior frequência, o que por sua vez resulta em maiores taxas de rotatividade ministerial e governos mais efêmeros. Em artigo recente a ser publicado no periódico de política comparada Government and Opposition, André Borges e Pedro Ribeiro demonstraram que o aumento da autoridade legislativa presidencial em regimes semipresidencialistas está associada a menores taxas de disciplina partidária. Além disso, o semipresidencialismo só produz comportamento partidário mais disciplinado quando os presidentes são fracos do ponto de vista das prerrogativas legislativas.
Feitas todas essas ponderações é preciso considerar, por fim, que reformas institucionais não são feitas ex nihilo sem contar os contextos sociológico e institucional pré-existente. Assim, a adoção eventual do sistema semipresidencialista no Brasil deverá responder as perguntas de qual modelo implantar (primeiro ministro dominante ou presidente dominante) de modo a chegar a um difícil consenso entre atores com interesses divergentes (ex., os partidos de vocação presidencial perderiam poder com tal mudança, enquanto os partidos especializados nas disputas congressuais e subnacionais teriam ganhos).
Em um cenário de crescente polarização das elites parlamentares e elevadíssima fragmentação partidária, os riscos de tal reforma produzir verdadeiro “Frankenstein” institucional não devem ser minimizados.
Em outras palavras, a implantação de um sistema semipresidencialista no Brasil assemelha-se ao efeito lampedusa, magistralmente apresentado no filme de Lucchino Visconti Il Gattopardo, que se resume a essa frase: mudar tudo para que nada mude.
Adrián Albala es cientista político. Professor no Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Brasília (UnB) e Coordenador do MBA em Políticas Públicas dessa universidade. Doutor em Ciência Política pela Universidade da Sorbonne (París).
Foto de Alex Barth en Foter.com
Autor
Cientista Político. Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília. Doutor em Ciência Política pela Universidade de Oxford. Mestre em Administração Pública pela Universidade Federal da Bahia.