Coautora María Victoria Alvarez
Na semana passada, foi realizada a III Cúpula Celac-UE. Que lições podemos extrair para o futuro das relações inter-regionais? Além da tradicional retórica e dos apelos para renovar e fortalecer as relações entre ambas as regiões, a Cúpula UE-Celac deixou um sentimento agridoce e apresentou oportunidades e desafios para ambas as partes.
Os consensos parecem ter se somado em amplitude, mas não em profundidade ou sentido estratégico. A extensa declaração final de 41 pontos não deixou de lado nenhum assunto da complexa e ampla agenda birregional, como mudança climática, desenvolvimento sustentável, igualdade de gênero, proteção e uso sustentável dos oceanos, acesso à água potável, transformação digital responsável, justiça social e combate à corrupção e ao crime. Trata-se de uma extensa e desafiante lista de temas conjuntos, sem estabelecer uma ordem de prioridade.
Em vez de poder se concentrar na construção de fortes consensos em um número reduzido de questões-chave, a declaração final se desvaneceu nos mínimos denominadores comuns característicos da agenda birregional, ainda que impregnada de um tom cooperativo e de referências simbólicas clássicas. Os temas prioritários apareceram com maior nitidez no roteiro: matérias-primas, crime organizado e narcotráfico, nova arquitetura financeira global, transição verde e digital e, é claro, o meio ambiente e as mudanças climáticas.
Ao menos pode-se assinalar que os governos latino-americanos e europeus voltaram a dialogar no mais alto nível após uma pausa de oito anos, que se deveu mais à desunião latino-americana do que ao desinteresse da União Europeia. A América Latina estava dividida entre governos de direita e de esquerda, a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos foi paralisada temporariamente e o governo brasileiro não participou das reuniões da Celac até o final de 2022.
A desunião latino-americana segue. Enquanto a Europa tem uma posição comum sobre a invasão russa da Ucrânia, a América Latina tem uma variedade de posições, que vão desde a condenação inequívoca da Rússia, passando por hesitações sobre a agressão russa, até uma postura abertamente pró-Rússia. O regime nicaraguense, cada vez mais isolado, conseguiu adiar por muito tempo a adoção de uma declaração conjunta devido ao parágrafo sobre o conflito da Ucrânia (que, no final, não foi aceito). E um Lula discordou da declaração de seu jovem homólogo chileno sobre a invasão.
A declaração sobre o conflito ucraniano foi bastante decepcionante de uma perspectiva europeia e mostra que não existe uma associação estratégica entre duas regiões sobre esse assunto existencial para a Europa. Há também uma brecha entre a América Latina e a Europa em relação à proteção dos direitos humanos e da democracia. A declaração conjunta da cúpula menciona os crimes do passado (escravidão), mas não fala dos crimes contra os direitos humanos no presente. Diante da situação de muitos países latino-americanos, a reafirmação de valores compartilhados em relação a “eleições livres e limpas, inclusivas, transparentes e confiáveis” parece cínica.
A cúpula demonstrou que a América Latina e a Europa estão longe de uma associação estratégica. O que existe são interesses estratégicos coincidentes em determinadas áreas. Na declaração conjunta, a Europa se mostrou muito disposta a se aproximar das posições latino-americanas para facilitar a cooperação entre as duas regiões, por exemplo, aceitando o princípio de responsabilidades comuns, porém diferenciadas (levando em conta as respectivas capacidades) para mitigar os efeitos adversos das mudanças climáticas.
Mas a cúpula também revelou uma tendência da UE de cooperar bilateralmente, em vez de multilateralmente, com sócios selecionados, caso a caso, em temas específicos. Em função da afinidade política, a UE também busca uma cooperação mais estreita e ampla com países individuais, como demonstra a assinatura de acordos bilaterais com o Chile e o Uruguai durante a reunião de Bruxelas.
Ao mesmo tempo, a declaração conjunta é um indicador da heterogeneidade da América Latina como região e das diferentes prioridades nacionais, já que contém temas que dão especial importância para governos ou sub-regiões específicos. Assim, condena a escravidão como um crime contra a humanidade e faz referência ao plano de dez pontos da comunidade do Caribe para a justiça reparadora.
Ademais, faz-se um chamado para suspender o embargo a Cuba, menciona a deterioração da segurança pública e da situação humanitária no Haiti e reafirma o apoio ao processo de paz na Colômbia. O texto também incentiva um diálogo construtivo nas negociações sobre a Venezuela na Cidade do México. E, de maneira destacada, a Argentina consegue que o assunto da soberania sobre as Ilhas Malvinas seja mencionado pela primeira vez. Por outro lado, o texto final toma nota só dos trabalhos que estão sendo feitos no acordo entre a UE e o Mercosul.
Antes da cúpula, a UE havia incluído a América Latina em seu programa Global Gateway, oferecendo assim incentivos materiais para uma cooperação mais estreita. No entanto, isso pressupõe uma vontade de cooperação dos governos latino-americanos. Não se deve esquecer que a agenda inter-regional conecta temas altamente delicados para a América Latina, dado que a UE redescobriu o potencial da região como sócio confiável em energia ou matérias-primas estratégicas, mas isso poderia incentivar práticas insustentáveis de exploração de recursos naturais.
Ao mesmo tempo, é importante observar que a América Latina não é o único parceiro da UE. Isso é frequentemente ignorado na América Latina. Não só a América Latina tem várias opções na política internacional, mas também a UE. Para dar só um exemplo, o hidrogênio verde também pode ser produzido na África, e muitos países asiáticos são mais promissores economicamente do que os países latino-americanos em muitos aspectos.
Foi importante que os governos da UE e da Celac se reunissem, dialogassem e reconhecessem os pontos em comum e os dissensos. Mas há o risco de repetir a experiência de outras cúpulas que não conseguiram revitalizar o ímpeto e a relevância dessas relações, ou o interesse de líderes, figuras econômicas, políticas ou sociais, ou a opinião pública, e gerenciaram agendas que foram diluídas em uma ampla gama de temas.
A III Cúpula UE-Celac demonstrou que as duas regiões estão longe de ter uma visão estratégica comum na política internacional, que há deficiências no processo de concertação latino-americana e profundas divergências nas respectivas cosmovisões. Em suma, ambas as regiões ainda precisam se reencontrar e explorar ao máximo o potencial de seus vínculos políticos, econômicos, culturais e sociais.
María Victoria Alvarez é professora e pesquisadora da Faculdade de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Nacional de Rosário (UNR), Argentina. Cátedra Jean Monnet na UNR. Diretora do Grupo de Estudos sobre a União Europeia da UNR.
Autor
Pesquisador associado do German Institute for Gobal and Area Studies - GIGA (Hamburgo, Alemanha) e do German Council on Foreign Relations (DGAP). Foi Diretor do Instituto de Estudos Latino-Americanos e Vicepresidente do GIGA.