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A desigualdade: um desafio histórico

As sociedades dos países com maiores lacunas sociais tendem a reproduzir suas desigualdades e sua percepção de tal é menor do que em países com lacunas sociais menores.

O recente relatório da Oxfam sobre o fim das eras da desigualdade é uma contribuição prática genuína à busca de novos horizontes de uma vida digna para as pessoas e suas comunidades. Certamente, esse relatório e o apresentado na Conferência de Davos e vários estudos de caso nacionais, como o elaborado há alguns anos na Bolívia, mostram uma cadeia inseparável entre o nacional-local, regional e global. Só combinando essa cadeia é possível entender o sentido específico de poder e mudança que vivemos todos os dias, em meio a intensas transformações tecnoeconômicas e científicas, e de redes de comunicação que funcionam em escala global através da digitalização mercantil da política e que operam diariamente nas mentes humanas.

Isso acontece em meio a uma crise multidimensional global com vários componentes entrelaçados, entre o produtivo, social, ecológico, político-institucional e multicultural, na qual o capital financeiro e as economias criminosas possuem um papel central, principalmente mediante a fetichização das mercadorias, prejudicando a ética e a segurança humana. Quem fabrica armas? Quem produz drogas e por quê? Quem maneja as indústrias tecnológicas, comunicacionais e os sistemas financeiros? E quem enriquece em um mundo miserável?

Um resultado particular, como analisa o estudo da OXFAM, é o aumento desumano da desigualdade e da pobreza. Desigualdade e pobreza são inseparáveis: o que significa que os dois latino-americanos mais ricos aumentaram sua fortuna em 70% desde o início da pandemia e que sua riqueza é similar à da metade mais pobre da região? O que as opções neoliberais e neodesenvolvimentistas fizeram a respeito? Por que o Estado, apesar de alguns momentos exitosos de implementação de políticas distributivas, não conseguiu sustentar a redução da pobreza, muito menos da desigualdade?

O relatório destaca a dúvida que a capacidade do Estado, seja de orientação neoliberal ou neodesenvolvimentista, sobre seu interesse ou capacidade de reduzir a desigualdade, gera na sociedade. Na realidade, nem a dominação patrimonial corporativa nem a neoliberal promovida pelo “Consenso de Washington” puderam cumprir seus próprios objetivos. Fracassaram.

Por outro lado, o estudo não só analisa o sistema distributivo, mas estuda os sistemas tributários e sua lógica de poder nos últimos anos, e propõe uma série de medidas impositivas aos mais ricos para reduzir a desigualdade e a pobreza. Aponta o Estado como o único ator capaz de promover medidas novas e eficazes, colocando as pessoas e suas comunidades no centro do sistema.

O relatório também propõe cinco alternativas tributárias para os mais ricos e inclusive propõe um novo pacto fiscal para enfrentar seriamente os problemas de desigualdade. Trata-se de uma contribuição inovadora, pois propõe políticas concretas e práticas que, infelizmente, nem os partidos nem os atores internacionais de desenvolvimento propuseram. O relatório é, portanto, uma referência importante para a ação coletiva e institucional que precisa ser comunicada. O diagnóstico é tão importante quanto a proposta, mas uma política de comunicação que permita o diálogo entre os diversos atores e que sua discussão se torne um bem público é ainda mais.

Vale esclarecer que, como produto e parte da chamada crise multidimensional global iniciada em 2007, os Estados, em grande parte, colapsaram e, nesses anos, novos horizontes de renovação estão surgindo. Estados autoritários e elitistas, associados a uma religião nacionalista autoritária de mercado e a forças socioculturais, especialmente entre as gerações mais jovens, mais pragmáticas, ecológicas, antipatriarcais e éticas, possivelmente já marcam o tempo de uma nova temporalidade histórica emergente.

A questão é entender o que se reproduz e o que muda. E nesse meio está a lógica do conflito sociocultural, que infelizmente não é abordada no estudo. Na região, o conflito e as demandas por melhor reprodução social, melhores instituições e conquistas culturais em torno da alteridade estão no centro da vida pública da região. A grande questão é detectar se essas demandas e identidades podem transformar-se em agentes de mudança nas sociedades da informação e nas economias da tecnocomunicação que levam a uma maior automação da vida.

Nessa área, há vários temas que o estudo levanta como espaços de discussão acadêmica e política. Em primeiro lugar, o marco histórico e global e o papel cultural das elites. Na América Latina e no Caribe, a origem da desigualdade está relacionada a vários fenômenos, como a estratificação social de origem colonial que segue organizando o comportamento das elites. Nesse contexto, há uma “dialética de negação do outro”, do diferente, em que eles são identificados como índios, negros, mestiços, mulheres etc., e imediatamente denegridos para justificar seu poder.

As elites da região praticamente não cumprem a lei e, ao longo dos anos, não têm demonstrado um “efeito demonstração” de comportamento ético e institucional. Em vez disso, o que foi imposto ao longo dos anos, com mecanismos e modificações incríveis, são sistemas de intermediação e clientelismo, anéis burocráticos e uma espécie de idealização de líderes autônomos que nunca ou quase nunca existiram. Apesar dos importantes esforços realizados ao longo do tempo, salvo casos como Costa Rica e Uruguai, a articulação entre instituições e modos inclusivos de desenvolvimento tem sido muito limitada.

Em segundo lugar, em termos globais, os poderes nacionais voltaram a se entrelaçar com os poderes globais, gerando novos sistemas de “extrativismo-informação” nos planos produtivo, financeiro e comercial, condicionando e limitando o desenvolvimento humano ecologizado. O individualismo e o consumo já afetam praticamente todas as sociedades, que são cada vez mais urbanas.

Os poderes globais estatais e empresariais do norte ocidental, China, Japão e Austrália estão mais uma vez redefinindo a região como extrativista e consumista. É claro que, a nível global, nacional e local, também existem forças culturais e atores políticos que buscam transformações sociais associadas a economias sustentáveis. Uma inovação sociotecnológica e ecológica é o principal desafio. No entanto, em nível global, o pensamento ambiental ainda é fraco diante dos poderes de destruição da vida e do meio ambiente.

A região está entre os principais produtores de matérias-primas, mas, ao mesmo tempo, está entre as que mais sofrem com as consequências da mudança climática. Lógicas similares se aplicam à igualdade de gênero e à construção de uma nova ética global baseada na dignidade dos direitos humanos e da natureza.

Em terceiro lugar, parece necessário redefinir o tipo de Estado para enfrentar as mudanças propostas pelo relatório. Um Estado que possa inovar, que navegue contra o vento articulando produção e distribuição, e cuja força esteja em uma comunidade de cidadãos. Em suma, um Estado público, conforme redefinido por Sen e Ul Haq no IDH de 1993, em que se conjugue uma economia de mercado com uma pública. “Tanto o Estado quanto o mercado devem ser orientados pelo público. Os dois devem trabalhar em conjunto e o público deve ter poderes suficientes para controlar ambos de forma eficaz. Isso pode ser feito através da participação no governo ou como produtores e consumidores ou, em muitos casos, mediante organizações populares ou organizações não governamentais”.

Em quarto lugar, é fundamental fortalecer os sujeitos do desenvolvimento e sua capacidade de agência para transformar metas em resultados e, sobretudo, articular procedimentos com resultados. As três medidas propostas pelo relatório – ações para reduzir as desigualdades intersetoriais pondo as pessoas e as comunidades no centro, promover a justiça climática para contribuir com a sustentabilidade da vida e promover políticas de gênero e cuidado – exigem atores autônomos que apoiem a ação de um Estado público.

Nesse âmbito, as transformações propostas necessitam articular uma ordem institucional pertinente com uma lógica de ação coletiva. Nesse sentido, parece essencial que os atores de um novo desenvolvimento se articulem, não só a nível local, mas também a nível global. Há experiências territoriais interessantes que devem ser conhecidas e discutidas, tanto a nível rural quanto urbano, no marco de uma dinâmica de transformação funcional e de mudanças cada vez mais especializadas que trazem novas demandas.

A secularização consumista está inundando a mente das pessoas. Mas também as redes de informação constituem os espaços de ação e redefinição dos novos atores de uma mudança ética emancipatória. Também é importante renovar o pensamento empírico que fortalece a capacidade dos novos atores do desenvolvimento.

Por fim, em quinto lugar, vale a pena repensar a questão da desigualdade e da pobreza como processo de diferenciação social e funcional em sociedades cada vez mais complexas e globalizadas. Isso supõe uma justaposição de exclusões e diferenças sociais e tecnocientíficas associadas a novas e crescentes formas de concentração de poder, sobretudo o financeiro e tecnológico-científico.

É necessário compreender a desigualdade em um contexto de mudança na reprodução das relações de poder social. A pobreza, como Sen analisou, não se refere só à falta de renda, mas também à perspectiva relacional do poder. Na realidade, o que existe são vidas empobrecidas. É por isso que a participação do cidadão é fundamental para compartilhar a vida social. As pessoas e suas comunidades precisam poder optar livremente pelo tipo de vida que desejam. Nessa lógica, o trabalho não é só emprego, é também reconhecimento humano, em que as pessoas precisam ser reconhecidas como cidadãos plenos. Hoje, o trabalho e a educação informacional já sustentam a dignidade humana.

A desigualdade na região tem variado e se complexificando ao longo dos anos em vários sentidos, entre países, dentro de cada país e entre territórios. Por exemplo, segundo o IDH de 1999, a diferença entre o país mais rico e o mais pobre passou de 1 para 3 em 1820 para 1 para 72 em 1992.

A desigualdade, como mencionado, está ligada sobretudo à etnia. As populações mais pobres da região são os afrodescendentes e as comunidades indígenas. A percepção da desigualdade e da necessidade de mudança é persistente e majoritária entre os habitantes da região. 79% dos latino-americanos acham que “alguns grupos poderosos governam para seu próprio benefício” e que vivem em uma sociedade injusta que deveria mudar, segundo o Latinobarómetro 2019.

Da mesma forma, as sociedades dos países com maiores lacunas sociais tendem a reproduzir suas desigualdades e sua percepção de tal é menor do que em países com lacunas sociais menores. É claro que, quando se vive em situações de crise e risco, as percepções aumentam ainda mais. Ademais, nesses tempos de crise multidimensional global, tanto os incluídos nos sistemas produtivos formais quanto as que vivem em situação de informalidade percebem uma grande incerteza. Essa é a única certeza, como o título de um livro do poeta guatemalteco Hugo Alfaro. Vivemos em sociedades policêntricas em meio a uma geopolítica de poder incerta e mutável.

Por fim, no centro de todas as vicissitudes está o sentido de mudança, de progresso e das próprias palavras. Por exemplo, em quechua, pobre, “wakcha”, significa quem não tem amigos, família ou laços sociais. Pobre é aquele que está só, órfão. Imagine um índice de “solidão” entre os mais ricos do mundo. Certamente, para a cultura quechua, muitos estarão entre os mais pobres.

Autor

Titular da Cátedra Simón Bolívar de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Cambridge. Professor e diretor do programa de inovação, desenvolvimento e multiculturalismo da Universidade Nacional de San Martín, Buenos Aires.

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