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A disputa pela ideia de democracia na América Latina

Durante as campanhas eleitorai que ocrorreram em 2021 em Equador, Argentina, Peru, Chile, México e Nicarágua, abundaram os discursos polarizadores e estratégias eleitorais de forte confrontação. A polarização reflete um estado de espírito compartilhado por elites e cidadãos, mas não se limita a disputas eleitorais e confrontos entre partidos. É o produto de uma profunda fenda em torno do significado da democracia que se abriu após as transições no final do século XX.

A princípios dos 80 so século XX América Latina transitou para a democracia por default, pois a alternativa socialista começava a se diluir. E embora ainda subsistiam esforços em alguns partidos e movimentos políticos da região por prover essa sistema  se desvaneceu totalmente com a posterior implosão da União Soviética. Por outro lado, os Estados Unidos abandonaram sua política de apoio a governos autoritários e embarcaram em uma nova política de promoção da democracia na região, não sem questionamentos.

A democratização não apenas implicou a incorporação das eleições livres como um instrumento para instaurar e mudar governos, mas também criou uma fratura entre duas posições político-ideológicas que disputam os significados da democracia.

Dois modelos de democracia

Em 1951, o historiador Jacob L. Talmon publicou “As origens da democracia totalitária”, no qual ele argumenta que durante o século XVIII e paralelamente ao surgimento da democracia liberal, emergiu outro tipo de democracia que denominou de “totalitária”. Esta última, embora afirme o valor da liberdade, difere da democracia liberal em sua atitude frente à política.

A concepção liberal – assinala Talmón – assume que a política é uma atividade de acertos e erros, de resultados pragmáticos devido à arbitrariedade e engenho humano, onde se aceita a pluralidade de planos porque existem atividades coletivas e pessoais que excedem o campo da política.

Em contraste, a perspectiva democrático-totalitária se baseia no pressuposto de uma verdadeira política única e exclusiva, que postula um esquema messiânico de realidades perfeitas, pré-ordenadas e harmoniosas para as quais as pessoas são conduzidas e obrigadas a chegar. A democracia totalitária só reconhece um plano: o político, e por tanto, estende o campo da política para abranger toda a existência humana.

Ao contrário da democracia liberal, que se baseia em um conjunto de ideias e preceitos pragmáticos, a democracia totalitária se baseia em uma filosofia coerente e completa que visa aplicar a política de maneira absoluta em todos os campos da vida. A liberdade humana é compatível com um modelo exclusivo de existência social?

Para a democracia totalitária é compatível, segundo Talmon, pois acredita-se que esta ideia seja imanente à vontade e razão das pessoas, daí que todas as formas extremas de soberania popular tornam-se concomitantes com este fim absoluto.

Embora Talmon tenha cunhado o termo “democracia totalitária” há mais de setenta anos, seus argumentos voltam a fazer sentido, não em termos das referências empíricas imediatas que ele observou, mas em termos da substância do confronto de como compreender os componentes da democracia.

As duas ideias de democracia apelam ao dogma da soberania do povo, mas enquanto a democracia totalitária assume que a vontade do povo expressada espontaneamente deve ser aceita sem reservas, a democracia liberal a submete aos controles republicanos e institucionais. Enquanto a primeira supõe que não se deve questionar as maiorias, a segunda levanta a questão de até que ponto estamos sujeitos à vontade da maioria?

Atualmente, na América Latina, dois modelos opostos de democracia coexistem, um liberal-representativo e o outro messiânico popular ou de massa. Enquanto o primeiro é elitista, pois supõe que a democracia é a competição das elites políticas pelo voto dos cidadãos para ter acesso ao governo, o segundo apela para uma lógica plebiscitária e “movimentista” na qual não existe a cidadania, mas sim o povo que se expressa através das maiorias.

A fratura e o confronto ideológico

Dois dos modelos de democracia que estão em disputa na América Latina se condensam nos documentos de duas organizações que são reflexo da fratura e do confronto ideológico. O primeiro modelo é o que promove o Foro de São Paulo, que surgiu em 1990 por iniciativa de Luis Inácio Lula da Silva e Fidel Castro. Este Foro nasce em um contexto de desencanto que gerou o fracasso do socialismo e busca recompô-lo e transformá-lo no contexto da democracia latino-americana.

Como se lê em um de seus documentos base de 2017, “Entre a globalização neoliberal e o protecionismo imperial” para os membros do Foro, os sistemas multipartidários “representam interesses de classe antagônicos entre si, e as instituições se convertem em trincheiras de luta”. Eles questionam a democracia representativa e as eleições porque dividem o povo. “Em nosso caso –afirmam- a divisão tem que ser entre o projeto neocolonial-neoliberal e o projeto nacionalista e de transformação social”.

Este atual apelo afirma que o compromisso com a democracia deve ter um caráter “popular, direto, participativo e comunitário”, assim como a construção da identidade nacional e americana “como um mecanismo de construção de hegemonia e poder popular e político”. Reclama o papel do Estado como insubstituível para garantir à cidadania o gozo dos direitos e a mobilização popular como a expressão do povo.

Quase onze anos após a criação do Foro, os países que integram a Organização dos Estados Americanos (OEA) adotaram em Lima, em setembro de 2001, a Carta Democrática Interamericana em Lima, em setembro de 2001, que é precisamente o outro polo da ideia de democracia na região. Promove fundamentalmente a democracia liberal representativa, e sua essência está resumida em seu artigo terceiro que estabelece “o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; o acesso ao poder e seu exercício sujeito ao estado de direito; a realização de eleições periódicas, livres, justas e baseadas no sufrágio universal e secreto como expressão da soberania do povo; o regime plural de partidos e organizações políticas; e a separação e independência dos poderes públicos”.

É evidente que a OEA e o Foro de São Paulo são organizações diferentes, já que a primeira é um organismo regional de Estados, em tanto que o Foro é um mecanismo de coordenacão entre partidos e movimentos com uma mesma posição ideológica. Mas ambas definem duas visões opostas da democracia e em disputa na América Latina.

A esta disputa deve ser acrescentada a perspectiva iliberal dos partidos e líderes da nova extrema-direita, também altamente críticos de componentes essenciais da democracia representativa liberal, tais como as instituições estatais que controlam o executivo (e em particular o Poder Judiciário), os partidos políticos e a mídia. Porém, a diferença das outras duas visões, esta corrente não tem uma organização ou fórum que aglutine os partidos e setores sociais que a promovem.

O modelo liberal-representativo foi o adotado para promover a democratização, enquanto o modelo de democracia popular e messiânico, assim como o iliberal da ultradireita, surgem em contraposição às promessas não cumpridas desse modelo.

No início da terceira década do século XXI, a política na região oscila entre esses modelos de democracia. A questão é que até que esta disputa pela democracia seja resolvida, a polarização na região pode aumentar e abrir a porta para soluções antidemocráticas que ninguém deseja.

*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima

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Cientista político. Professor da Universidade de Guanajuato (México). Doutorado em Ciência Política pela Universidade de Florença (Itália). Suas áreas de interesse são a política e as eleições na América Latina e a teoria política moderna.

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