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A diversidade cultural também é biodiversidade

Uma comunidade ribeirinha às margens do rio Amazonas deixou de consumir tartarugas devido à escassez. As comunidades indígenas do deserto de Atacama, no Chile, reorientaram sua relação com os recursos hídricos devido à crescente escassez de água para manter e inclusive criar zonas de grande biodiversidade. Já na Bolívia, mulheres de várias comunidades regionais, indígenas e não indígenas, se reúnem para trocar experiências e sementes, a fim de superar a perda de biodiversidade em seus sistemas alimentares. O que têm em comum? Suas dinâmicas culturas vivas seguiram as mudanças em seus territórios. Adaptaram suas práticas cotidianas para preservar o entorno mediante a presença e o cuidado.

O Marco Mundial para a Biodiversidade de Kumming-Montreal, resultado da última Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade (CBD), é considerado uma tentativa histórica de seguir protegendo os ecossistemas do mundo. O acordo prevê o aumento do número e a extensão das zonas protegidas em todo o planeta, e com um objetivo ambicioso: ter 30% da área terrestre e marinha total da Terra em parques e outras áreas protegidas até 2030. O novo marco apresenta objetivos mais ousados e avanços na integração da biodiversidade à política e à tomada de decisões em escala mundial.

No entanto, o problema é que o marco se concentra na implementação de mais áreas protegidas, como parques nacionais, mas dá pouca prioridade ao que deveria estar no centro das políticas de conservação: a diversidade cultural e a reparação histórica. As áreas protegidas para uso sustentável abordam parte do problema, mas muitas vezes não situam as populações locais no centro das atenções.

Embora “os povos indígenas e as comunidades locais” sejam citados dez vezes em distintas partes do texto, a menção compreende sua inclusão em políticas que geralmente são encabeçadas por outras pessoas e instituições (como grandes ONGs internacionais de conservação) e não seu papel central para tornar o mundo mais diverso biológica e culturalmente. A terceira meta do relatório reconhece que os direitos territoriais das comunidades indígenas e tradicionais devem ser respeitados, mas não buscados. Não há menção de apoio ao desenvolvimento de marcos institucionais para reconhecimento cultural ou reivindicações territoriais como aspectos críticos para fomentar a diversidade da vida na Terra.

No caso das terras indígenas, embora ainda haja muito a ser feito para aplicar e reconhecer adequadamente esses territórios, as leis estão mais bem estabelecidas. Dadas as lutas dos líderes indígenas para impulsionar essa agenda, inclusive nos debates mundiais sobre a conservação, as instituições jurídicas multinacionais e nacionais avançaram.

Pior ainda é o caso das populações regionais, embora não indígenas. As salvaguardas legais de suas relações específicas com o meio ambiente são muito mais frágeis, e suas práticas cotidianas de cuidado com as florestas mais biodiversas do mundo passam despercebidas.

Na América Latina, há uma grande riqueza cultural de formas de se relacionar com o meio ambiente, algo que também ocorre em muitas partes de África e Ásia. Trata-se de pecuaristas, seringueiros, comunidades ribeirinhas, pescadores e mulheres tradicionais, camponeses, pantaneiros, quilombolas e muitos outros com uma forte cultura baseada no lugar que engloba seu entorno vital. São populações marcadas por legados históricos particulares, como a diáspora africana e outras formas de colonialidade, que desenvolveram formas próprias de viver e sobreviver em seu entorno. Ao longo dos anos, se adaptaram constantemente, criando territórios de vida, gerenciados e conduzidos por pessoas com a natureza.

Ao observar os contextos materiais do sul, fica claro que reconhecer as populações em projetos de conservação para delimitar mais parques, reservas e outras áreas protegidas não é suficiente para desenvolver uma conservação ambientalmente eficaz e culturalmente justa. Portanto, devemos nos perguntar o que significa esforços de conservação inclusivos.

Esses temas serão aprofundados durante o Congresso de Pesquisa e Inovação em Sustentabilidade (SRI2023), que será celebrado este mês no Panamá, na seção intitulada “Compromisso das partes interessadas para uma conservação transdisciplinar e inclusiva”. Espera-se que surja dali uma série de recomendações sobre a inclusão nos esforços de conservação para contribuir para que os povos indígenas e não indígenas se tornem protagonistas na solução, a fim de deter a perda de biodiversidade, e não só em algo a se contemplar à margem das principais áreas de conservação restritivas.

A riqueza das soluções disponíveis oferecidas por esses povos é vital para qualquer caminho que avance um mundo mais sustentável, povoado por diversas culturas e ecossistemas. No entanto, por enquanto, esforços como os das comunidades ribeirinhas ao longo do rio Amazonas, dos povos indígenas do Atacama ou das mulheres bolivianas permanecem em grande parte invisíveis nos debates sobre como deter a perda da biodiversidade em escala mundial.

Autor

Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro com Pós-Doutorado em Ecologia Aplicada pela Universidade de São Paulo. Especializada em práticas de pesquisa transdisciplinares e processos inclusivos de conservação da biodiversidade.

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