Os quatro anos do governo Bolsonaro deram a falsa impressão a uma boa parte da opinião pública, nacional e internacional, de que os males do Brasil tiveram origem em sua gestão, que só foi possível graças à operação Lava-Jato que “criminalizou a política”. Nada mais distante da realidade.
É mister reconhecer que a “criminalização da política” é tema antigo em nosso país e que não começou com a operação Lava-Jato. A participação política fora dos quadros das elites dominantes nunca fez parte de nosso cotidiano como nação, basta ver como, do período regencial no Império (1831-1840) até 1964, a emergência de novos atores amiúde desaguou em revoluções e contra-revoluções pela fragilidade dos canais de participação que fomos capazes de constituir ao longo deste período.
Embora em 1930 tenhamos, finalmente, aberto espaços para o protagonismo institucional de trabalhadores e mulheres, o processo de acomodação dos novos protagonistas foi entrecortado por experiências autoritárias (Estado Novo e Regime Militar) que refundaram o sistema político em sentido contrário e reformaram a Constituição de modo que a estabilização democrática só foi alcançada em 1985.
Neste trajeto, o regime de ampla liberdade e participação política veio à luz sem a prévia consolidação de um sistema de competição política que tivesse educado os cidadãos para a disputa na arena pública (cultura cívica), nem estabelecido canais virtuosos de participação acessíveis à todos (associativismo), para não falar do arcabouço jurídico entrecortado por interesses circunstanciais. Assim, os novos protagonistas, muitos deles emigrantes do interior, adensaram as periferias das cidades (metropolização) sem transformarem sua cultura de resignação política e compadrio com os titulares do poder (coronelismo) formada no campo.
O resultado da “ruralização das cidades” não poderia ser bom, mas as suas implicações para o processo de democratização – intuídas por autores como Caio Prado Jr. (1942) e Victor Nunes Leal (1947) – foram ignoradas pelo “otimismo da vontade” em nome da luta pela redemocratização (1970-1980) e, naturalmente, o que ela implicava como perspectiva de poder. A recusa em encarar o tema dura até hoje, embora os sinais do problema tenham se tornado iniludíveis.
O chaguismo é um marcador importante para entendermos a questão, pois foi uma espécie de avant première do fenômeno que se consolidaria mais tarde no interior do PMDB depois do Plano Cruzado (1986), quando este partido elegeu 22 dos 23 governadores, 38 dos 49 senadores em disputa, e obteve a maioria absoluta na Câmara Federal com 260 Deputados, números jamais igualados por qualquer outro partido.
Chagas Freitas, mesmo sem o apoio da liderança nacional do então MDB, consolidou seu poder local na antiga capital do país – depois Estado da Guanabara – sem fazer efetiva oposição ao Regime Militar, pautando sua ação política pelo uso sem rodeios da máquina pública como máquina eleitoral, reduzindo o partido a mero instrumento para a prática das políticas de favor (empreguismo e bica d’água).
Não obstante a curta duração de seu poder (doze anos), suas práticas se alastraram pelo PMDB e pelos novos partidos surgidos após 1979, como o PTB de Ivete Vargas, o PDS de Maluf, o PFL de ACM, e até mesmo o PDT de Brizola. O único a se distinguir nesta paisagem foi o PT.
O PT cresceria não só apostando no engajamento militante, como se contrapondo explicitamente às práticas chaguistas por meio da bandeira da “ética na política”, atraindo os votos dos descontentes do PMDB e desidratando os dois partidos comunistas recém-legalizados (1985), de quebra anatematizando o PSDB – partido dissidente do chaguismo peemedebista –, como “nova embalagem do velho sistema político” em descrédito.
Uma vez na Presidência da República (2002), porém, o PT logo perceberia que a “ética na política” tinha alcance limitado na opinião pública. De poderoso trampolim para a conquista do poder, tal bandeira passaria a ser vista como um limitador para o pleno exercício do poder, o que fez com que ela fosse substituída pelas bandeiras inclusivas do identitarismo e da luta contra a fome e a pobreza.
A nova fórmula foi o sucesso conhecido até que a população começou a sentir o peso da conta a pagar pelo pacto de inclusão posto em prática, por un Estado perdulário e ineficiente. Sem economia capaz de sustentar a renda dos grupos de nível superior, o recuo aos serviços de Estado em setores sensíveis como educação básica, saúde e segurança, também revelou aos remediados/emergentes outro aspecto da natureza do modelo de inclusão petista: equalizar a sociedade ao nível da expansão da oferta de serviços públicos sem mudança de qualidade. Logo (esta consciência explodiria nas ruas (2013) e levaria à queda do PT (2016), abrindo espaço para uma oposição radical de direita nas eleições de 2018.O fracasso de Bolsonaro e a volta de Lula ao poder, nos traz inevitavelmente a questão: seremos capazes de superar os tremendos desafios que temos pela frente com o sistema político atolado no limbo chaguista de sempre e o “toma-lá, dá-cá” instalado no coração dos poderes centrais?
Autor
Cientista político. Professor de Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF (Brasil). Doutor em História Contemporânea pela Univ. Federal Fluminense (UFF) e Mestre em Ciência Política pela Unicamp.