Em 23 de janeiro, celebrou-se outro aniversário do gesto civil-militar que derrubou a ditadura de Marco Pérez Jiménez na Venezuela. Neste aniversário da democracia venezuelana – hoje em estado de zumbi –, as fachadas de Organizações não Governamentais, sedes locais do partido Vente Venezuela e as casas de dirigentes políticos opositores amanheceram vandalizadas com pichações vermelhas ameaçadoras e a assinatura “Fúria Bolivariana”.
Em poucos dias, o governo de Nicolás Maduro deteve de maneira irregular dois dirigentes locais de Vente Venezuela e tornou pública uma lista de militares rebaixados e expulsos por traição e conspiração. Também anunciou a ordem de prisão de 11 civis, entre jornalistas, representantes de ONGs e líderes políticos. Todos acusados de supostas conspirações e tentativas de magnicídio. Uma história conhecida.
A semana terminou com a decisão do Tribunal Supremo de Justiça de rechaçar a impugnação da desqualificação administrativa de María Corina Machado, a principal líder da oposição e candidata presidencial da Plataforma Unitária da Venezuela. A desqualificação de outro líder da oposição, às vezes chamado de “moderado”, Henrique Capriles Radonski, também foi confirmada. A desqualificação foi levantada para outros líderes de menor alcance nacional.
Esse processo de impugnação fez parte do marco mais amplo dos Acordos de Barbados firmados entre o governo e a oposição em outubro passado, bem como outros acordos silenciosos entre o governo de Maduro e a diplomacia estadunidense, que facilitaram a flexibilização das sanções setoriais que pesam sobre a Venezuela. Em troca, o governo libertou uma dúzia de presos políticos e os Estados Unidos indulto o notório empresário que se tornou diplomata, Alex Saab, que foi uma peça-chave no negócio de compra e venda de alimentos de baixa qualidade, adquiridos a preços excessivos, que sustentou a principal política social que o governo venezuelano mantida durante a dura crise econômica da última década.
Com a decisão do TSJ, destacam-se os conflitos internos do chavismo, que recentemente dissolveu distintas posições: por um lado, quem promovia a tímida liberalização política – que buscava se adequar à abertura econômica direcionada que ocorre há vários anos – e, por outro lado, os que buscavam reafirmar a vocação autoritária do regime, que resiste à possibilidade de uma alternância política negociada. A fúria bolivariana impulsionou a balança e deu um golpe de morte nos Acordos de Barbados.
O governo de Maduro se recusa a participar de eleições competitivas e medianamente justas, caso contrário, permitiria aos partidos que o opõem a designar sua candidata, eleita em primárias abertas. No entanto, além de se recusar a competir sob regras mais ou menos justas, também põe em risco um acordo com o qual buscava sua legitimação internacional e acesso a recursos que necessita. O grupo de poder assume que a administração de Joe Biden está com muitos problemas, tanto internacionais quanto domésticos, para endurecer as sanções econômicas que, argumentam, incentivaram a migração venezuelana irregular para os Estados Unidos. A segurança na fronteira sul estadunidense é um dos pontos mais fracos da campanha de reeleição de Biden, que encontra resistência não só na base republicana anti-migrante, mas também entre independentes e democratas moderados.
Assim que a decisão do TSJ foi conhecida, o governo dos Estados Unidos mostrou seu rechaço e anunciou que revisará a política de flexibilização das sanções. Mesmo que os Estados Unidos voltem a impor as sanções mais severas, está claro que os fatores mais avessos à flexibilização da política interna se afirmaram: é um custo que estão dispostos a pagar. Manter o poder em condições econômicas extremas e às custas da miséria da população é uma estratégia já usada. Não é uma circunstância pela qual tiveram que passar; hoje é uma escolha do regime.
Além do que o governo Biden decidir, o que importa é o que a oposição venezuelana fará. Por anos, o governo de Maduro conseguiu alimentar as divisões internas da oposição com repressão direcionada, perseguição a grupos opositores e financiamento de desertores de partidos políticos. O governo oferece vantagens àqueles que estão obedientemente dispostos a participar de eleições em que nada está em jogo. Ademais, a elite do poder se beneficia do cansaço social, da passividade do setor produtivo e da inércia autoritária da “harmonia desiludida” gerada pela pax bodegônica: a estabilidade posterior a escassas concessões materiais com controle político rígido.
A oposição tem o desafio de liderar uma campanha por eleições livres que mantenha no jogo o tabuleiro da negociação, mas que possa articular o protesto cidadão e a coordenação social de base e entre os partidos políticos. Não é um desafio pequeno e interpela a liderança que emergiu do processo de primário para gerar consensos internos sólidos e uma estratégia efetiva que inclua, mas transcenda, a candidatura presidencial. Esses tipos de consensos e articulações de diversos grupos conseguiram, em janeiro de 1958, derrubar o ditador Marcos Pérez Jiménez e, na atualidade, recobram especial vigência.