No início de abril deste ano, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Brasil constituiu, por unanimidade, o entendimento de que a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha – LMP) se estende e se aplica aos casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transexuais.
A Corte entendeu que as agressões sofridas pela vítima (uma mulher transexual), cometidas por seu pai em sua casa, alcançaram o dispositivo do art. 5 da LMP configurando uma violência baseada no gênero e não no sexo biológico, e determinou a aplicação das medidas protetivas requeridas nos termos do art. 22 da referida Lei.
O recurso do Ministério do Estado de São Paulo ao STJ para o reconhecimento do direito à aplicação da LMP para uma mulher trans foi a terceira tentativa, pois o juízo de primeiro grau e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) negaram os pleitos, ponderando que a LMP se referia apenas ao sexo biológico. Tal afirmação das duas instâncias inferiores contrariou a Recomendação 128 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que observa um protocolo para julgamentos com perspectiva de gênero.
A tese em si neste julgamento envolvia o questionamento de aplicabilidade da LMP às mulheres trans. Ainda que a LMP se refira a violência com base no gênero, as cortes de primeira e segunda instância aplicavam o entendimento de violência com base no sexo biológico.
A controvérsia, portanto, é sintetizada em trecho da decisão do relator no STJ, ministro Rogerio Schietti, o qual afirma: “Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos [pessoas trans], que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas, e o direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias”.
Há de ser considerado que Ação a Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 e o Mandado de Injunção 4733 criminalizaram a homofobia e a transfobia nos moldes da Lei 7716/89, equiparando ao crime de racismo.
As Cortes de 1ª e 2ª instância provocam o STJ
A questão da violência contra mulheres trans e sua reivindicação aos remédios previstos na LMP e na Lei nº 13.104/2015 (lei do Feminicídio) é objeto de disputa em juízos de primeiro grau e nas turmas colegiadas de Tribunais de Justiça no Brasil, os quais acabam levando os casos à discussão no STJ, como ocorreu acima.
Em 2019, a 3ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios decidiu que o conceito de feminicídio deve alcançar mulheres transgêneros no caso de uma tentativa de feminicídio com base no ódio à condição de transexual da vítima, caracterizando menosprezo e discriminação ao gênero feminino da vítima (a qual contava com alteração do registro civil).
Uma decisão recente do STJ de 15 de dezembro de 2020, no âmbito do HC 541237/DF, determinou que é o Tribunal do Júri quem deve delimitar a aplicação ou não da qualificadora de feminicídio à vítima transexual.
Neste caso, a Defensoria Pública do Distrito Federal havia impetrado habeas corpus para afastar a aplicação da qualificadora de feminicídio, o que foi negado pelo STJ, por situar que na agressão à vítima, os acusados caracterizaram menosprezo à condição de mulher, ao verbalizarem para a vítima “virar homem”.
Ser transexual na América Latina é uma tortura
O desrespeito aos pronomes, aos nomes sociais e às identidades de gênero, violência física, emocional, sexual, além de suicídios e assassinatos fazem parte da conjuntura violenta da realidade das pessoas trans. De acordo com o Dossiê 2022 da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA), 3 a cada 4 mulheres trans e travestis sofrem algum tipo de violência ao longo de 2021.
A ANTRA destaca que em 2021 foram contabilizados 140 assassinatos de pessoas trans, sendo 135 travestis e mulheres transexuais e 05 casos de homens trans – apontando o Brasil como o país mais letal comparado internacionalmente. Já o relatório Transrespect versus Transphobia Worldwide da ONG Transgender Europe (TGEU) destaca que no Brasil ocorre 4 entre 10 assassinatos de pessoas trans no mundo.
O relatório La cartografía de los asesinatos de las personas trans y de género diverso do Observatório da Violência Contra pessoas Trans na America Latina e Caribe, aponta que na região ocorreram 277 casos em 2020, com concentração de vítimas até 30 anos e profissionais do sexo.
O Relatório de Mapeamento Legal da International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association de 2019, aponta que a América Latina é um espaço de proximidades e contrastes no direito das pessoas trans. O reconhecimento de gênero foi aprovado em onze países na região, todavia, o reconhecimento pela autodeterminação sem comprovação de intervenções cirúrgicas, apenas ocorre na Bolívia, Brasil, Chile, Costa Rica e Equador. O Uruguai é o único país em que há legislação específica de garantia de direitos às pessoas trans.
Ao mesmo tempo, há permanência da questão da prostituição e sua criminalização direta associada às atividades de profissionais do sexo (em que pessoas trans encontram fonte de renda, tendo em vista a exclusão no sistema formal de emprego) como na Argentina, em que a prostituição organizada é ilegal, mas a “particular” não é desde que não seja realizada em vias públicas. Ou criminalização indireta por multa, como no caso do Uruguai, em que, mesmo reconhecendo legalmente o trabalho sexual, acaba por delimitar horários, vestimenta e comportamentos “que não afetem a sensibilidade das famílias”. Ou criminalização suspensa em casos como na República Dominicana, em que o Código Penal prevê a prostituição como crime, mas a Suprema Corte do país entendeu pela despenalização da prostituição, mantendo apenas como crime o proxenetismo. Há ainda a criminalização de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo (e com/entre pessoas trans) ainda ocorre em Belize ou no caso de atentado moral aos bons costumes no Chile, Colômbia, Equador e Peru.
Por uma Agenda de Direitos às Pessoas Trans
A reivindicação de direitos de pessoas trans no Brasil e na América Latina perpassa pela afirmação de sujeitos de Direitos, mobilizando e associando a categoria “gênero” ao sexo como interdependentes em construção social junto à violência e desigualdade. Tal medida, inclusive, teve ecos a partir do movimento realizado a partir da decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, ao decidir que pessoas trans não podem sofrer discriminação no trabalho.
Se reforça um movimento jurídico que agrega a defesa dos direitos e afirmação à vida sem violência. Leis não previnem e sequer acabam, por si só, com a violência, mas são um passo na exigência de ação do Estado em defesa de pessoas trans. Consequentemente, forçam o confronto com leis que criminalizam para que sejam revogadas.
O sentido, destarte, é reescrever a base normativa que serve de interpretação aos litígios para que pessoas trans possam exercer os mesmos direitos e prerrogativas daqueles que exercem em maioria na sociedade. É um longo caminho para a consolidação de uma agenda, mas que vem a passos sem volta.
Autor
Professor Associado do Departamento de Administração Pública da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ). Doutor e Mestre em Políticas Públicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).