O presidente do Equador assinou, na manhã de quarta-feira, 17 de maio, o decreto de dissolução da Assembleia Nacional, aplicando pela primeira vez no país o artigo 148 da Constituição aprovada em 2008. Esse dispositivo, conhecido como “morte cruzada”, foi criado para desbloquear conflitos institucionais entre as funções do Estado, em particular entre os poderes executivo e legislativo. A ideia dos constituintes ao redigir a Constituição era proteger o presidente e evitar sua possível destituição arbitrária pelas mãos de maiorias legislativas incontestáveis.
O mecanismo de morte cruzada é um recurso do Presidente da República frente a uma situação de “grave crise política”. A caracterização dessa situação fica a critério do presidente e não requer a qualificação de nenhum outro órgão do governo. É uma característica do hiperpresidencialismo equatoriano, que, no entanto, aplica princípios de uma democracia parlamentar ao forçar novas eleições quando o conflito entre o executivo e o legislativo impede a ação do governo.
A aplicação da morte cruzada fecha um ciclo de conflito político entre o executivo e o legislativo e abre outro, com a renovação das autoridades em ambas as funções do Estado. A Constituição estipula que o Conselho Nacional Eleitoral deverá convocar imediatamente eleições para presidente e membros da assembleia para que completem o tempo restante de mandato. De acordo com os prazos entre a convocação, a eleição e a nomeação das novas autoridades, está previsto um período não superior a seis meses, no qual o atual presidente governará sem um órgão legislativo e poderá aprovar, por decreto, leis de urgência econômica, mediante sua qualificação por parte da Corte Constitucional.
Visualiza-se então um período em que o governo em exercício pode realizar seu trabalho sem as travas ou os obstáculos que podem ser impostos pela Assembleia Nacional. Durante esses meses, o partido do governo e sua coalizão têm a possibilidade de reconfigurar suas linhas de ação e se fortalecer no período que antecede as eleições, em que se prevê que o atual presidente busque a ratificação de seu mandato.
As consequências dessa conjuntura para as outras forças políticas são diferenciadas. O que para alguns é uma oportunidade, para outros é um grave prejuízo. Esse é o caso do tradicional partido de direita, o Partido Social Cristão, um aliado do correísmo no processo de impeachment do presidente, que se viu em um cenário de fortalecimento se ele fosse destituído. A ascensão do vice-presidente ao novo cargo poderia ter significado uma aproximação dele a um governo possivelmente mais alinhado à sua tendência política.
O social-cristianismo saiu muito mal de sua aliança com o correísmo. Nas últimas eleições, perdeu a prefeitura de Guayaquil, seu reduto político histórico, mas seu retrocesso é notório em todo o país e não é mais uma opção para a presidência. Ele certamente sofrerá uma redução no número de representantes na próxima Assembleia Nacional.
Os outros partidos de centro-esquerda, Pachakutik e Izquierda Democrática, que pareciam ter recomposto suas bancadas nas últimas eleições, também são vítimas de sua aproximação com o correísmo. As cisões dos setores atraídos pela força da maioria correista na assembleia desarticularam todas as suas projeções. As figuras por trás de seu êxito eleitoral (os candidatos presidenciais Yaku Pérez e Javier Hervas) já não militam em suas bancadas. A liderança do Pachakutik está em disputa e o movimento sofre assédio da CONAIE, a organização histórica dos indígenas, que quer assumir o controle total do movimento.
Esse não é o caso da UNES (Unión por la Esperanza), o partido do Correísmo, que liderou a estratégia do impeachment e que sai dessa conjuntura relativamente ileso. Por um lado, está sofrendo o efeito da destituição da assembleia, onde havia conseguido consolidar seu domínio absoluto, mas, por outro lado, emerge como a força mais bem posicionada para a próxima eleição. A fragmentação das oposições pode favorecê-lo nas eleições presidenciais e legislativas. Sua contestação à morte cruzada foi morna, já que vinha preparando suas forças para possíveis eleições.
Embora a morte cruzada seja um expediente constitucional e legal, sua aplicação não tem precedentes na história constitucional do país, o que gera grande incerteza. O institucionalismo está mais uma vez sendo posto à prova e é forçado a demonstrar sua capacidade de contenção.
Três entidades serão fundamentais para a condução de um processo político extremamente complexo: o Conselho Eleitoral e a Corte Constitucional. O Conselho Eleitoral tem a tarefa de organizar, em um prazo curto, um processo eleitoral transparente e eficiente em um cenário político tenso. Por sua vez, a Corte Constitucional, que terá de monitorar as ações do executivo para que não excedam os parâmetros constitucionalmente estabelecidos, na ausência de um órgão legislativo para supervisionar seu desempenho; em particular, terá de qualificar a constitucionalidade dos decretos de emergência econômica aos quais o executivo pode recorrer e que se tornaram seu principal instrumento de gestão e legislação. A operação de estabelecer limites claros sem intervir como um ator político do processo poderia consolidar essa instituição como a mais importante garantidora da democracia e dos direitos constitucionais.
É previsível que o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, um organismo que deveria ser caracterizado por seu apartidarismo e que recentemente renovou sua composição, possa introduzir turbulências no processo político. Ele está claramente alinhado com o correísmo e declarou sua intenção de substituir a legislatura em sua tarefa de fiscalização. É muito provável que o correísmo tente usar esse organismo como um pivô para recuperar o poder.
Autor
Sociólogo. Lecionou em diferentes universidades do Equador e é autor de vários livros. Doutor em Sociologia pela Università degli Studi di Trento (Itália). Especializado em análise política e institucional, sociologia da cultura e urbanismo.