Brasil está discutindo uma nova Reforma Tributária. Agora em tramitação no Senado, a aprovação da reforma só deve ocorrer após as eleições municipais, enfrentando desafios similares aos da Câmara e exigindo ajustes para garantir uma reforma positiva à população e ao meio ambiente.
Sem dúvidas, a aprovação de uma nova Reforma Tributária é um feito histórico. Há décadas o Brasil é refém de um sistema cuja alta complexidade dificulta práticas de transparência, alimenta políticas fraudulentas e corrobora com a concentração de riquezas. Temos hoje em nossas mãos a possibilidade de reorganizar a política tributária e de colocar a justiça fiscal na ordem do dia.
A tributação sobre o consumo pode conformar uma política pública à medida em que trabalha para incentivar o consumo de produtos e serviços benéficos à população ou ao meio ambiente, e para desestimular aqueles associados, por exemplo, a doenças e à crise climática. Os instrumentos mobilizados nessa reforma têm o potencial de qualificar e modernizar o sistema tributário e aperfeiçoar a relação do Estado com os entes federativos.
A Cesta Básica, os Regimes Diferenciados e o Imposto Seletivo podem contribuir para a promoção de práticas saudáveis e sustentáveis, influenciando não apenas a escolha dos consumidores, mas também os demais elos da cadeia produtiva. Incentivando, por exemplo, o desenvolvimento de tecnologias limpas que, ao longo dos anos, substituam o consumo de combustíveis fósseis. Além disso, esse novo modelo pode gerar recursos a serem direcionados para programas de saúde pública e iniciativas ambientais.
O texto apresentado pelo Poder Executivo introduziu uma Cesta Básica Nacional alinhada ao Guia Alimentar para a População Brasileira, focando em alimentos in natura e minimamente processados, respeitando critérios de saudabilidade e regionalidade. O texto aprovado pela Câmara dos Deputados expandiu a lista original, que incluía hortícolas, frutas, leguminosas e grãos, para incluir outras sete categorias. Entre elas, a polêmica inclusão de uma enorme variedade de carnes: bovina, suína, ovina, caprina, de aves e peixes, e a inclusão de queijos, que engloba ultraprocessados.
Aqui surge um problema relevante. Desde a discussão da Proposta de Emenda à Constituição (PEC 45/2019), estiveram claras as intenções da indústria alimentícia em ampliar a lista de produtos isentos na Reforma Tributária, por meio de suas associações e contando com a força política da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) e da Frente Parlamentar pelo Empreendedorismo (FPE) no Congresso. A isenção das carnes e alimentos ultraprocessados foi defendida com o apelo por um combate à fome completamente dissociado de quaisquer noções de saúde, segurança alimentar e proteção ambiental.
Esses setores usaram argumentos falaciosos e evidências falsas para justificar a dependência dos ultraprocessados pelas camadas mais vulneráveis e uma alegada viabilidade fiscal, que não se sustenta. O presidente da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA), João Dornelas, chegou a negar os riscos associados aos produtos embutidos, como salsichas e presuntos. Formou-se ainda uma coalizão chamada União da Cadeia Produtiva de Alimentos e Bebidas Não-Alcoólicas (UNCAB) para intensificar sua incidência na Reforma Tributária.
O texto prevê uma redução fiscal de 60% para todos os agrotóxicos, o que perpetua um modelo produtivo focado na monocultura e na exportação de commodities como soja, milho, cana-de-açúcar e trigo. Esse modelo provoca degradação ambiental e compromete a saúde pública, priorizando o mercado de ultraprocessados, derivados dessas commodities. Como resultado, limita-se a viabilidade de práticas orgânicas e agroecológicas, que priorizam alimentos in natura e minimamente processados, respeitam os biomas e culturas alimentares, e focam no mercado doméstico para promover políticas de combate à fome, segurança e soberania alimentar.
Há que se considerar, portanto, que o agronegócio sai mais uma vez à frente em benefícios e competitividade. Vale lembrar, por exemplo, que grande parte dos alimentos da sociobiodiversidade, como as castanhas e óleos vegetais, não recebem nenhum tipo de incentivo. Prevalecem os privilégios sobre um modelo de produção cujo impacto ambiental resulta em consequências catastróficas, traduzidas pela elevada contaminação do solo, água e ar. Além disso, cria barreiras físicas, políticas e fiscais à implementação de práticas produtivas mais sustentáveis e equitativas.
Imposto Seletivo
Na Reforma Tributária, o IBS e CBS surgem para substituir quatro impostos, ICMS, ISS, PIS e COFINS, e simplificar o sistema. O projeto adiciona uma ferramenta de importante função social: o Imposto Seletivo (IS). Esse tributo, já implementado em diversos países, visa desestimular o consumo de certos produtos e é o único da EC a aplicar sobretaxas. Por essa razão, é sobre ele que residem as maiores disputas no Congresso.
Atualmente, a lista de produtos no Imposto Seletivo inclui veículos, aeronaves, embarcações, produtos fumígenos, bebidas alcoólicas, bens minerais e refrigerantes. Devemos celebrar a inclusão desses itens, compreendendo seus impactos negativos. Entretanto, é fundamental tratar com maior seriedade os ultraprocessados e os agrotóxicos. O consumo dos ultraprocessados gera 57 mil mortes evitáveis por ano, e milhões em custos à saúde pública refletidos no tratamento da obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e câncer.
A inclusão apenas dos refrigerantes no IS é muito tímida, principalmente considerando o pioneirismo do Guia Alimentar e da ciência brasileira ao cunhar o termo ultraprocessado, e as contribuições para entender a epidemia de consumo desses alimentos. A expansão do seletivo sobre as bebidas adoçadas já é realidade em diversos países.
A inclusão das carnes na Cesta Básica gerou um desequilíbrio fiscal que elevou muito a alíquota de referência, gerando um novo e enorme desafio aos senadores. Uma maneira de alcançar esse equilíbrio é ampliando o escopo do Imposto Seletivo, atuando como um contrapeso na balança. Os senadores têm em mãos a oportunidade de trabalhar a redução do consumo de mais produtos nocivos, como, por exemplo, expandindo a lista de ultraprocessados, incluindo agrotóxicos, armas e munições e embalagens plásticas.
Assim, a taxação de produtos altamente consumidos precisa estar associada à promoção de novos ambientes que possibilitem a adaptação a um padrão de consumo mais saudável, justo e sustentável. Por isso, a importância de incentivos fiscais a alimentos in natura, minimamente processados e processados, da sociobiodiversidade, bioinsumos, à agricultura familiar e recursos energéticos sustentáveis. A justiça social na Reforma perpassa também a expansão do cashback e do retorno integral aos produtos de primeira necessidade. Uma reforma tributária saudável, solidária e sustentável é possível, e essa tarefa agora compete aos senadores e senadoras do Brasil.
Autor
Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e Cientista Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. Assessora de Advocacy na ACT Promoção da Saúde no projeto Alimentação Saudável.