A América Latina atravessa uma das situações mais dramáticas de sua história. A pandemia persiste e alguns de seus países se encontram entre os mais castigados do planeta. Tornou-se evidente a falta de serviços estatais capazes de atender à enorme demanda sanitária devido à diminuição e, em grande parte, à privatização dos mecanismos de previdência social. Isto tem impulsionado, em vários países da região, os agudos processos sociais e políticos que estavam sendo vivenciados antes da pandemia.
Abertura, desregulamentação e privatizações
Nas últimas décadas, a maioria das economias latino-americanas haviam se reorganizado seguindo a receita da abertura, da desregulamentação e das privatizações. E uma das consequências mais notórias foi a diminuição do Estado e a transferência de muitas de suas funções, especialmente em matéria de educação, saúde e bem-estar, para o setor privado.
A chegada dos governos de orientação social-democrata ou esquerdistas, por vezes, conteve este processo mediante uma redistribuição através do orçamento. Mas isto repousou em grande parte no aumento dos recursos fiscais proporcionados pelo boom das matérias primas no começo do século. Em meados da segunda década, as economias começaram a esfriar e as tensões voltaram a emergir.
Em 2019, Equador, Chile, Colômbia e Bolívia viveram explosões sociais convulsivas. Regiões do interior do Peru resistiram a vários projetos extrativistas endossados pelos governantes de Lima e crescia a indignação com a corrupção de suas elites. Os argentinos sofreram um colapso econômico naquele ano, com uma alta inflação e uma desvalorização pior, que terminou com uma dívida impagável com o FMI. As eleições serviram como uma válvula de escape e assim surgiu o governo de Alberto Fernández.
Brasil e México estavam vivendo os primeiros momentos de Bolsonaro e AMLO, cada um em seu próprio estilo, canalizando o protesto social acumulado. A Venezuela continuou em crise e expulsando migrantes que começaram a saturar a capacidade dos países vizinhos. E na América Central, entre a crise eterna e a ameaça das “maras”, surgiram as caravanas de migrantes rumo ao Norte.
Diante de tal cenário, como sempre, o republicano Uruguai e a democrática Costa Rica permaneceram os únicos bastiões de estabilidade na região.
O início da pandemia
Em março de 2020, apareceu o primeiro caso de Covid-19 no Brasil. Em poucas semanas, quarentenas, colapsos econômicos e medo atingiram os latino-americanos. Segundo a CEPAL, em 2020 as exportações reduziram em 13% enquanto as importações caíram em 20%. A contração econômica da região foi cerca de 8%, a maior em 120 anos.
A raiva acumulada se misturou com a incerteza do emprego e a ameaça à saúde. As sociedades buscaram proteção e os olhos voltaram-se para o Estado. Mas a maioria dos países careciam de serviços estatais capazes de atender à enorme demanda sanitária.
O crescimento econômico dos anos prévios em muitos casos aumentou o trabalho informal e o endividamento das famílias através da expansão do crédito privado. Assim, a quarentena e o confinamento encontraram milhões de trabalhadores latino-americanos sem renda formal, dependentes do dia a dia e endividados.
Os caminhos de saída
É difícil delinear o final do túnel quando a maioria das pessoas continua penosamente no “beco da amargura”. Nos países onde o surto da crise sanitária, somado ao descontentamento social pré-existente, coincidiu com um processo eleitoral, a energia foi canalizada ou está sendo canalizada dessa forma, como na Argentina, Equador, Peru. E no Chile, foram feitos acordos para realizar profundas reformas institucionais.
Por outro lado, onde não há mecanismos institucionais para processar as demandas sociais e as eleições estão um pouco distantes, o conflito se instalou, como no caso colombiano. O fato é que a maioria das sociedades latino-americanas demanda mecanismos básicos de proteção social que hoje ou são escassos, ou simplesmente não existem ou foram desmantelados pela febre da privatização.
Construir uma rede básica de previdência social mudará as bases do Estado subsidiário e privatizador imperante na região. Obviamente, este é um tema de prioridades políticas e sociais, mais do que uma questão estritamente técnica. Como tal, deve ser definido a partir da opinião dos cidadãos de cada país.
Certamente, os regimes que colocam a proteção social dos cidadãos no centro tendem a elevar a qualidade de sua democracia. O liberalismo extremo que conhecemos também gerou uma ampla demanda de participação, transparência e controle cidadão que ponha freios à corrupção e à reprodução de burocracias políticas que monopolizam o Estado.
O estado de bem-estar na América Latina
As economias latino-americanas podem sustentar um Estado de Bem-estar, por mais básico que seja? Há países em melhores condições do que outros, mas também há uma falta de mecanismos multilaterais eficientes que permitam a construção de instrumentos mínimos de concertação ante desafios comuns: desde a negociação até a produção de vacinas. Se um país do tamanho de Cuba é capaz de fazer isso, por que países maiores não podem?
Se olharmos o mapa político próximo da América do Sul, vemos que no Brasil Lula está emergindo, na Colômbia Petro, e no Peru em poucos dias o segundo turno definirá se o Fujimorismo volta ou se o professor Castillo se torna presidente. As eleições chilenas ainda estão a vários meses de distância, mas é claro que a direita não permanecerá no poder.
A construção de Estados Benfeitores na América Latina, para não se tornar um barril sem fundo, requer uma estratégia de desenvolvimento para apoiá-lo. Na América do Sul, o aumento da demanda e dos preços de seus produtos de exportação ajudam, mas obviamente é necessário um impulso à infraestrutura, um aumento da produtividade, diversificar a oferta de exportação e, é claro, um salto nos recursos humanos. Além disso, é necessário agir de forma coordenada contra o crime organizado e reformar o Estado para limpar as práticas corruptas e clientelistas.
Não é pouco, nem fácil e muito menos rápido. Mas estes são desafios que devem ser enfrentados. Este pode ser um bom momento para que boa parte dos países da região assumam a formação de novos pactos sociais, para os quais é necessário construir maiorias cidadãs que apoiem o processo.
*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima
Foto de Steve Levi no Foter.com
Autor
Cientista político. Foi professor no Instituto de Estudos Internacionais da Universidade do Chile, na Academia Diplomática Andrés Bello e nas universidades UAM e UNAM de México. Foi embaixador e subsecretário de Guerra do Ministério da Defesa do Chile.