A “armadilha Tucídides” é um termo popularizado pelo cientista político estadunidense Graham T. Allison para descrever “os perigos concomitantes quando uma potência em ascensão rivaliza com uma potência estabelecida”, incluindo as condições potenciais de um conflito bélico entre elas. A narração das Guerras do Peloponeso feita pelo grande historiador da Grécia Antiga é utilizada, nesse caso, para descrever a ascensão da China como uma nova Atenas do século XXI desafiando a Esparta representada pelos Estados Unidos. Esta imagem da história comparada, captada pela academia e pelo debate intelectual, foi tomada à vista por estrategistas e líderes políticos. O próprio Xi Jinping argumentou em Seattle, durante uma viagem aos EUA em 2015, que “não há tal coisa no mundo como a chamada armadilha de Tucídides (…)”, embora tenha continuado advertindo que “se os principais países cometem erros de cálculo estratégico repetidamente, poderiam criar tais armadilhas para si mesmos”.
A História da guerra do Peloponeso, de Tucídides, segue ilustrando da antiguidade o presente das relações internacionais e é de especial atualidade quando uma das superpotências desafia abertamente a paz e a segurança internacional, como a Rússia está fazendo na Ucrânia alegando motivações geopolíticas e etno-territoriais que levam consigo implicações nefastas. Mas Tucídides não é útil só para explicar a relação entre as grandes potências, mas também a relação entre elas e o resto dos estados.
É famoso, nesse aspecto, O Diálogo dos Mélios, uma passagem do Livro V desta obra, na qual os atenienses oferecem aos mélios um ultimato: render-se e prestar tributo à Atenas ou ser destruído. Os mélios resistem e terminam arrasados. A frase que define a relação – “os fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que devem” – marcará um apotegma da chamada “escola realista” das relações internacionais.
Na Argentina, esta referência foi retomada e utilizada nos anos 90 para explicar a reorientação da política externa e o alinhamento com os EUA durante o governo de Carlos Menem a partir do chamado “realismo periférico”. A Argentina acompanhou Washington na primeira guerra do Golfo (1990), foi beneficiada por créditos e financiamentos que elevariam sua dívida externa, e foi incorporada como “aliado extra-OTAN”. Também sofreu os dois mais graves atentados terroristas provenientes do fundamentalismo islâmicos na América Latina: o bombardeio da embaixada de Israel (1992) e da sede da sociedade mútua israelita, a AMIA (1994). A lição aprendida foi que se envolver com a potência hegemônica traria maiores benefícios do que seguir sofrendo o isolamento de uma posição distante, reticente ou confrontativa.
Hoje, o Diálogo dos Mélios de Tucídides é utilizado para exemplificar o drama da Ucrânia, enfrentando a invasão russa, num contexto global marcado pelas tensões entre Moscou e o Ocidente, definidas como uma nova Guerra Fria, com uma China que observa com expectativa essas tensões. A América Latina, que tem sofrido durante o século XX com a condição de ser cenário de disputa, aberta ou encoberta, entre as grandes potências, sabe o que isso significa. Mas a América Latina, cabe também esclarecer, não atende um único telefone: mostra-se mais como um conglomerado díspar de atores com suas próprias posições do que como um ator com posições comuns no cenário global.
Na votação da Assembleia das Nações Unidas para exigir que a Rússia cessasse as hostilidades na Ucrânia, realizada em 24 de março – ao completar o primeiro mês da invasão – o resultado contra Moscou foi contundente: 140 dos 196 países votaram a favor. Os do G7 lideraram essa posição, que foi seguida por toda Europa e 29 dos 34 países da América Latina. 38 se abstiveram, apenas 5 o rejeitaram e 13 se abstiveram da votação.
Na votação da Assembleia Geral de 4 de abril, que tratou e aprovou a retirada da Rússia do Conselho de Direitos Humanos da ONU, os votos contrários à Rússia caíram de 140 para 97, as abstenções cresceram de 38 para 51 e os votos negativos de 5 para 24. Conforme Rosendo Fraga aponta, a reviravolta foi encabeçada pelas potências regionais do mundo em desenvolvimento: Brasil e México na América Latina, Nigéria e Egito na África, e Arábia Saudita e Indonésia na Ásia. Estes países abandonaram sua rejeição à Rússia em favor da abstenção, arrastando votos de suas respectivas áreas de influência. A China, que havia se abstido nas votações anteriores, passou a rejeitar a moção de sanções, enquanto a Índia, a África do Sul e o Paquistão continuaram evitando condenar a Rússia.
No âmbito da América Latina e do Caribe, a Organização dos Estados Americanos (OEA) votou em 21 de abril a suspensão da Rússia como país observador permanente do organismo. A resolução contou com 25 votos a favor, 8 abstenções, uma ausência e nenhum voto contra. Ou seja, uma rejeição majoritária de Moscou acompanhando a postura de Estados Unidos e Canadá. Mas entre as 8 abstenções, estavam as três maiores economias da América Latina: Brasil, México e Argentina. Ao contrário do que aconteceu em outras regiões do mundo, onde as potências regionais arrastaram os votos de seu entorno, isso não ocorreu nesta região.
Na encruzilhada atual, cada país latino-americano luta novamente com um dilema de difícil resolução, talvez uma segunda “armadilha de Tucídides”: como evitar o envolvimento imposto pelos “grandes jogadores”, sabendo ao mesmo tempo que não pode permanecer à margem de um conflito que tem múltiplos impactos diretos e indiretos e consequências locais, nacionais e regionais sobre a vida dos povos.
*A versão original deste artigo foi publicada no Diario Clarín de Buenos Aires.
Autor
Cientista político e jornalista. Editor-chefe da seção Opinião do jornal Clarín. Prof. da Univ. Nacional de Tres de Febrero, da Univ. Argentina da Empresa (UADE) e de FLACSO-Argentina. Autor de "Detrás de Perón"(2013) e "Braden o Perón. La historia oculta"(2011).