Uma tendência crescente no número de novos casos e mortes por Covid-19 tem sido confirmada diariamente desde novembro nas Américas, que são hoje o epicentro da pandemia global. O percurso letal continua na região, que detém a mais da metade dos casos e mortes do mundo, com os Estados Unidos e o Brasil ponteando, lamentavelmente, esta triste estatística. Cerca de 30 milhões de casos e 800 mil mortes foram registrados desde o início da pandemia até 12 de dezembro. Nestes números estão incluídos os 14 milhões de casos e as 500 mil mortes registradas na América Latina. O Brasil está próximo de 200 mil mortes e 8 milhões de casos. Mas todos estes números, hemisféricos, sub-regionais e nacionais, são seguramente mais elevados, pois a testagem é reduzida e muitas mortes ainda deverão ser confirmadas.
Porque a AL vem sendo tão intensamente fustigada pela pandemia? Em primeiro lugar, pela acentuada pobreza na qual vive grande parte da população. A CEPAL estimou que a pobreza, que já vinha em elevação desde 2017, cresceu de 185,5 milhões em 2019 para 230,9 milhões em 2020, um incremento de 45,4 milhões de pessoas (Figura 1). Isto significa que hoje 37,7% da população latino-americana vive em situação de pobreza.
Figura 1. População em situação de pobreza, América Latina (18 países)
2019-2020
Fonte: CEPAL (2020)
Ademais, a mesma instituição projeta que o coeficiente de Gini se incrementaria entre 1 e 8% e que as maiores economias da região exibiriam os piores resultados.
Além da desigualdade de renda, a pandemia pela Covid-19 escancarou também outras dimensões da desigualdade na América Latina: pobres, negros, indígenas, moradores de periferias, favelas, quilombos e aldeias são mais afetados pela enfermidade que os demais. É muito claro que com a pobreza e a desigualdade cresce também espantosamente a vulnerabilidade da população: quanto mais pobres, mais suscetíveis a adoecer pela Covid-19 e maior fatalidade, isto é, óbitos por casos.
As autoridades sanitárias (e as lideranças nacionais) dos países estão atônitas e muitas vezes perdidas em atuar de forma eficiente para atenuar ou mitigar as consequências sanitárias, sociais e econômicas causadas pela pandemia. No Brasil e, talvez, no México, a situação é ainda mais caótica, com a postura negacionista dos respectivos presidentes e a incompetência escancarada do Ministério da Saúde.
Não obstante, formulam-se muitas propostas de enfrentamento desta situação tão calamitosa, de forma heterogênea, seja nos planos nacionais, seja no regional e nos arranjos sub-regionais de países.
Diplomacia da saúde regional nas respostas multilateral e plurilateral
Sessões Especiais da Assembleia Geral das Nações Unidas (UNGA) são raras: desde a criação da ONU, em 1945, apenas 30 sessões deste tipo haviam sido realizadas. A 31ª. realizou-se virtualmente dias 3 e 4 de dezembro último e teve como tema a pandemia pela Covid-19. Interviram nas discussões o SG Guterres, os presidentes da UNGA e do ECOSOC, o presidente do Conselho de Segurança e o presidente do Movimentos dos Não Alinhados, proponente da Sessão. Mais de 90 chefes de Estado se pronunciaram durante o debate geral.
Três painéis foram realizados no segundo dia: 1) a reposta do sistema das Nações Unidas à Covid-19; 2) O caminho até a vacina para a Covid-19: Um bem público global; 3) Resiliência e recuperação para melhor da Covid-19. Em todos eles, a figura comum foi o DG da OMS, Tedros Adhanom. A mensagem central foi que a comunidade internacional deve fortalecer a luta contra a pandemia e buscar a recuperação, que deve se dar pelo compromisso global e de cada país com a implementação da Agenda 2030 do Desenvolvimento Sustentável (UNGA, 2020: Alcazar, Galvão e Buss, 2020).
No mesmo período, arranjos plurilaterais, como o G20 e o BRICS se reuniram tendo também como tema prioritário a Covid-19. Artigos enfocando estas duas cúpulas e detalhando os principais debates e suas conclusões foram publicados no blog do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz.
Na semana anterior à UNGA, a Assembleia Mundial da Saúde reuniu-se virtualmente, para finalizar a sessão iniciada em maio de 2020, e obviamente a pandemia pela Covid-19 foi novamente o ponto prioritário da agenda, sem entretanto, deixar de aprovar um conjunto expressivo de resoluções sobre outros temas da agenda global. Os Estados-membro reiteraram os termos da Resolução única da sessão da AMS de maio de 2020 sobre a Covid-19 e debateram a implementação do Regulamento Sanitário Internacional, sem contudo, para nossa surpresa, estabelecer um processo de revisão profunda sobre o que funcionou ou não relativo ao esperado do Regulamento.
A Organização Pan-americana da Saúde (OPAS), reunindo todos os Ministros da Saúde das Américas dia 10 de dezembro, discutiu as formas de tornar equitativa a distribuição da vacina na região”
O braço hemisférico da OMS, a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS), reunindo todos os Ministros da Saúde das Américas dia 10 de dezembro, discutiu as formas de tornar equitativa a distribuição da vacina na região, incluindo o mecanismo do Fundo Rotatório de Vacinas, existente há muitos anos, com grande eficiência, na Organização.
Em conjunto, a CEPAL e a OPS manifestaram-se cedo, ainda em julho deste ano, com o documento Salud y economía: una convergencia necesaria para enfrentar el COVID-19 y retomar la senda hacia el desarrollo sostenible en América Latina y el Caribe. Desde aquele momento, ambas instituições já apontavam que se a curva de contágio pela enfermidade não fosse controlada, não seria possível reativar a economia dos países e da região como um todo. Indicava, além disso, que tanto o controle da pandemia como a reabertura econômica requeriam liderança e uma efetiva e dinâmica reitoria dos Estados, mediante políticas nacionais que integrem políticas económicas, sociais e de saúde. O documento advogava, desde então, por um aumento do gasto fiscal para controlar a pandemia e favorecer a reativação e a reconstrução, além do que, fosse mais eficaz, eficiente e equitativo, de modo que o gasto público destinado à saúde alcance pelo menos 6% do PIB.
Seguiram-se outras propostas veiculadas pela CEPAL no terreno econômico e social, inclusive o documento de posição apresentado aos Estados-membro no 38ª. Período de Sessões da CEPAL, Construir un nuevo futuro: una recuperación transformadora con igualdad y sostenibilidad.
A CELAC, por sua vez, sob a presidência do México, procurou colocar o tema Covid-19 na agenda do debate latino-americano, sem grande sucesso. Já o Brasil, player histórico regional, renunciou a todas as reivindicações de liderança no tema da pandemia na agenda regional e não tem demonstrado nenhuma vontade de participar ativamente na formação do mundo posterior à pandemia. Na realidade, o Brasil e mesmo o México, não tem sido os melhores exemplos na abordagem que fizeram da epidemia em seus territórios.
Em artigo recente publicado em L21, Nolte faz uma análise muito apropriada dos efeitos colaterais da Covid-19 sobre a integração de AL. Assinala que “a crise da COVID-19 expôs impiedosamente os déficits estruturais do regionalismo latino-americano. Uma crise também pode ser uma oportunidade. Mas isto requer liderança e uma agenda comum”. Para o autor, diferente da União Europeia, não há liderança suficientemente forte na AL (seja singular ou compartilhada) que possa promover projetos regionais ou acabar com a paralisia que algumas das organizações regionais estão sofrendo.
No Mercosul, os Presidentes Bolsonaro e Fernández reuniram-se no início de dezembro, buscando retomar laços fragilizados por questões político-ideológicas e priorizar temas de interesse comum aos dois países. Paralelamente, realizou-se, a 3 de dezembro, a LXVII Reunião de Ministros da Saúde do Mercosul, que resultou em quatro declarações: 1) sobre a importância de garantir a saúde ambiental e do trabalhador no contexto da pandemia; 2) sobre a assistência alimentar a populações vulneráveis no âmbito da Covid-19; 3) sobre o controle do tabaco e da Covid-19; e 4) sobre o mecanismo COVAX da OMS.
Também incentiva o apoio ao Mecanismo COVAX da OMS para garantir que a capacidade de pagamento dos países não se torne uma barreira para o acesso às vacinas Covid-19″
Também incentiva o apoio ao Mecanismo COVAX da OMS para garantir que a capacidade de pagamento dos países não se torne uma barreira para o acesso às vacinas Covid-19, situação que deixaria muitos países da região das Américas desprotegidos e levaria a que esta pandemia durasse mais do que o necessário, propondo ainda uma representação dos países do Mercosul nos órgãos de governança daquele mecanismo. Na oportunidade, o Uruguai passou a presidência pro-tempore do Conselho à Argentina.
Já o PROSUL criou cinco Mesas de Trabalho para operacionalizar os compromissos fixados pelos presidentes: Migração e Fronteiras; Compras Conjuntas; Acesso a Créditos Internacionais; Epidemiologia e Disponibilidade de Dados; e Trânsito de Mercadorias, que se encontram em fase preliminar de atuação.
Para a CEPAL (2020; 2020a), para enfrentar a crise sanitária e seus graves efeitos sociais e econômicos, serão necessários “pactos políticos e sociais a serem construídos por uma ampla variedade de atores, de forma a alcançar a universalização da proteção social e em saúde, reorientando o desenvolvimento com base na igualdade e em políticas fiscais, industriais e ambientais para a sustentabilidade”.
Afinal, trata-se de proposta de “um Estado de bem-estar que assegure acesso universal à saúde, fiscalidade redistributiva, incremento da produtividade, melhor prestação de bens e serviços públicos, manejo sustentável dos recursos naturais e aumento e diversificação dos investimentos públicos e privados”. Para o que deve concorrer “a solidariedade regional e internacional para construir com base em valores comuns e responsabilidades compartilhadas em prol do progresso para todos”.
Como se depreende do exposto, todas as organizações multi e plurilaterais da América Latina estabeleceram pactuações em torno a um enfrentamento poder-se-ia dizer integral à Covid-19. Isto é uma excelente notícia. Com este arsenal de statements e resoluções, a base necessária base política está dada. O poder público tem responsabilidades intransferíveis; só um Estado transformado, com governos comprometidos, uma adequada governança e a mobilização da sociedade civil, serão capazes de transcender a retórica destas manifestações e encontrar os mecanismos nacionais e sub-regionais para colocá-las em prática, assim como o financiamento das medidas sociais, políticas e sanitárias imprescindíveis e impostergáveis.
Colecção de fotografias do Banco Mundial em Foter.com / CC BY-NC-ND
Autor
Professor Emérito da Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz (Rio de Janeiro). Diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde (CRIS) dessa instituição. Membro Titular da Academia Nacional de Medicina do Brasil.