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As aparências na era da pós-verdade

Diz o ditado que as aparências enganam. Mas nem sempre. Não é preciso ser cientista para suspeitar que algo está queimando quando se vê fumaça. Mas cabe à ciência explicar não só causas e efeitos, mas o porquê de as coisas acontecerem de um jeito e não de outro. De acordo com Marx, se a aparência e a essência das coisas coincidissem diretamente, a ciência seria desnecessária. Para ele, ciência significa o conhecimento efetivo da realidade, para além das aparências, sem, contudo, ignorá-las. Assim, mais do que supor que as aparências (sempre) enganam e buscar a verdade numa essência não aparente, trata-se de desvelar a razão e o movimento pelo qual as coisas aparecem como aparecem, às vezes enganando, às vezes não, às vezes as duas coisas ao mesmo tempo. De propósito ou sem querer.

A essência das coisas, nessa abordagem, não tem nada de outro mundo. Diz respeito simplesmente ao que a coisa efetivamente é, e isso inclui o que ela parece ser, o que aparece para nós que a observamos.

Charlatões e embusteiros têm sucesso por parecerem confiáveis. Mas uma pessoa pode parecer honesta e, de fato, ser essencialmente honesta.

Como distinguir?

Muito antes do surgimento da linguagem humana, incluindo suas mil formas de mentira – logro, embuste, falcatrua, charlatanice, meias verdades e outras modalidades de desinformação –, a própria natureza já dispunha de um riquíssimo arsenal de truques que confundiam essência e aparência, pelo menos a partir do reino vegetal: que se pense nas plantas carnívoras e seus estratagemas para atrair insetos, para os quais elas são essencialmente mortais, embora (a)pareçam tão atraentes e inofensivas.

As teias de aranha são redes finíssimas, mas proporcionalmente fortíssimas, praticamente invisíveis, assim como os bichos-pau e os camaleões sabem ser mestres da camuflagem, para defesa ou ataque. E há tartarugas fluviais que permanecem imóveis sob as águas, com a boca aberta, da qual sai um apêndice que parece um verme para atrair os peixes incautos. A aparência do verme apetitoso oculta a voraz tartaruga, que irá devorá-los.

Nos mares também há delicados cavalos-marinhos que se parecem com as algas em meio às quais eles se ocultam e protegem. Mas ninguém supera os moluscos, lulas, sépias, polvos, que mudam de cor, forma e textura conforme queiram se ocultar de predadores ou iludir suas vítimas. Ninguém, antes dos humanos.

A desinformação é tão antiga que antecede a própria espécie humana. Mas é a desinformação humana, também antiga, provavelmente tanto quanto a própria humanidade, que nos interessa aqui. Ela também envolve um jogo de aparência e essência, da sua modalidade mais grosseira, a mentira pura e simples, às mais sutis, feitas de meias-verdades, descontextualização e outros recursos de que trataremos adiante.

Porém, apesar de tão antiga, ela não é sempre a mesma, pois apresenta nuances e modulações históricas, geográficas, retóricas, sociotécnicas que nos impedem de afirmar que nada mudou. E há, nos últimos anos, novos movimentos em curso: o raio de alcance das redes sociais digitais, desde que se tornaram populares, sua capilaridade e a velocidade de suas operações não têm precedentes. Os custos dos impulsionamentos de mensagens são relativamente módicos, se comparados com a imprensa e a radiodifusão.

Mas ninguém antes dos humanos.

E a precisão comunicacional é maior, devido à mencionada capilaridade e ao conhecimento dos gostos do público por parte dos emissores e mediadores, graças à vigilância da navegação de todos, onipresente nas redes. Esse conjunto de fatores vem alterando substancialmente o ecossistema comunicacional conhecido, com consequências ainda imprevistas, dada a relativa novidade do fenômeno.

Ao conjunto das modalidades desinformacionais contemporâneas que nascem, fluem, transbordam, irrigam, alimentam o cenário da pós-verdade e dele se retroalimentam, dou o nome de desinformação digital em rede (doravante DDR). A noção de DDR diz respeito ao conjunto de ações desinformacionais veiculadas nas diversas redes digitais existentes, tais como Facebook, Twitter, Instagram, YouTube, WhatsApp, Telegram, TikTok e similares. Não se refere, portanto, a conversas presenciais, à velha imprensa ou à radiodifusão, embora certamente as nutra e seja por elas nutrida.

É importante marcar esta especificidade do fenômeno. Porque o custo relativamente baixo de suas operações em comparação com a mídia tradicional (1), seu alcance imenso e customizado (2), somado à escassa e difícil regulação dessas ações em termos técnicos e jurídicos (3) favoreceram a que a DDR se convertesse, em quase toda parte, num elemento muito influente da superestrutura ideológica emergente no âmbito da infraestrutura das redes digitais e, ao mesmo tempo, em investimento (marginal?) na mesma. Essa infraestrutura, por sua vez, é um precioso produto e propriedade da fração principal do grande capital de hoje (acoplada ao financeiro, o armamentista, o farmacêutico e o energético).

As fronteiras entre legalidade e ilegalidade tornam-se nebulosas nessa ambiência, ao ponto de o parlamento do Reino Unido – que rigorosamente não pode ser caracterizado como expressão do pensamento crítico radical – ter acusado a empresa de Mark Zuckerberg de atuar como um gângster digital (HOUSE OF COMMONS, 2019; PEG, 2019), cerca de um ano antes de Steve Bannon, artífice da eleição de Trump, ter sido preso por falcatruas comerciais que possuíam, ao mesmo tempo, uma aura xenofóbica e racista, envolvendo o muro separando EUA e México (G1, 2020).

A publicidade em torno das ações de DDR envolvendo a Cambridge Analytica, tanto no Brexit quanto na eleição de Trump (GUIMÓN, 2018), certamente contribuíram para a popularização dos termos fake news e pós-verdade – e por razões compreensíveis. De fato, em meio ao universo da DDR, uma das questões mais sensíveis é o impacto das fake news na formação da pós-verdade, num círculo vicioso, ou melhor, numa espécie de espiral viciosa de retroalimentação, ao que tudo indica centrífuga.

Parte substancial da desinformação contemporânea é marcada por elementos reacionários, misóginos, racistas, homofóbicos e, no limite, neofascistas. A mobilização de temores e preconceitos atua como um cavalo de Troia que carrega no ventre o neoliberalismo, o qual não ousa mais se expor francamente após décadas de promoção de guerras, destruição ambiental e desigualdade social crescente.

O corolário disso tudo são discursos de ódio, terraplanismo, movimentos antivacina e inumeráveis teorias conspiratórias, mais ou menos perigosas, que convertem a sadia desconfiança nas autoridades, característica do pensamento moderno, numa mistura indigesta de ceticismo em relação ao estado de direito, à ciência, à imprensa, com dogmatismo em relação àquelas do tipo pós-moderno – políticos midiáticos fanfarrões, influenciadores digitais, seitas mil.

Teorias conspiratórias têm sempre um fundo de realidade misturado com camadas de fantasia. Seus formuladores e propagadores fantasiam explicações e soluções simplistas para os problemas reais do mundo. Conspirações reais existem. Prova disso são as próprias teorias conspiratórias, fabulações fantasiosas produzidas por conspiradores reais e difundidas por incautos, dos mais inocentes aos mais perigosos.

Quem ganha com isso? Quem perde? De que maneiras? Qual é o gradiente entre o sociopata e o inocente útil, nesse jogo às vezes mortal de perde e ganha? O que fazer para superar esse quadro?

*O texto acima é uma versão condensada da Introdução do livro A Era da Desinformação: pós-verdade, fake-news e outras armadilhas, publicado em 2022 pela Editora Garamond, Rio de Janeiro, Brasil. Ver: https://www.garamond.com.br/loja/a-era-da-desinformacao

Autor

Professor de Comunicação e Ciência da Informação da UFRJ. Coordenador do Centro Internacional de Ética da Informação na América Latina. Membro da Rede Nacional de Combate à Desinformação.

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