Não há dúvida que a União Europeia (UE) tem um interesse renovado em aumentar suas relações comerciais com a América Latina e o Caribe (ALC). Isso se deve, sobretudo, à abundância continental dos chamados minerais críticos, que possuem um papel de primeira linha na transição energética promovida também na Europa, que está em processo de substituir sua frota automobilística por carros elétricos e substituir as importações chinesas por painéis solares de fabricação própria. As empresas europeias já iniciaram uma séria ofensiva de investimentos no continente, cientes de que já estão chegando tarde à “festa” e que dificilmente substituirão as empresas chinesas que já estão operando há alguns anos. O interesse da Europa ficou, de fato, muito evidente na última cúpula UE-ALC, que ocorreu em um momento em que a guerra de agressão russa contra Ucrânia provocou uma forte crise energética, ainda presente. Os minerais críticos do subsolo latino-americano são, portanto, também minerais geoestratégicos.
O grande desafio que as economias latino-americanas enfrentam, pela enésima vez, é evitar cair na famosa “maldição dos recursos naturais”. Essa “maldição” não está ligada apenas ao desequilíbrio na balança dos fatores de produção causado pela abundância de matérias-primas, mas também a práticas de rentismo, destruição ecológica, violações de direitos humanos e corrupção. A nórdica Noruega é um dos exemplos vívidos de que é possível evitar a maldição dos recursos naturais com boa governança e alta responsabilidade empresarial. Os riscos são enormes, e o passado recente mostra que é muito fácil cair nas tentações do extrativismo desordenado.
As empresas europeias não trazem só novas tecnologias e grandes somas de capital. Embora pareçam complexas e cheias de interferência, as relações com a UE podem ser mais vantajosas se as preocupações com a proteção ambiental e os direitos humanos forem levadas a sério. Como as organizações ambientais e de direitos humanos de todo o continente já denunciaram, os impactos negativos do (neo)extrativismo já são uma realidade na maioria dos países do continente. A destruição ambiental e a violação dos direitos humanos na extração de minerais essenciais parecem estar reproduzindo a violência social e ambiental que caracterizou o setor de combustíveis fósseis: com 61% das denúncias globais de abuso, a América Latina é a região com o maior número de abusos no desenvolvimento de energia renovável, e o número está aumentando.
A Lei de Devida Diligência
Em 15 de março de 2024, os Estados-Membros da UE aprovaram a chamada Diretiva de Due Diligence de Sustentabilidade Corporativa (CSDDD). Essa é uma Lei que pode ajudar a estabelecer as bases para uma obtenção de minerais críticos e outras matérias-primas mais amigáveis ao meio ambiente e aos direitos humanos. O objetivo da CSDDD é garantir que as empresas europeias tomem medidas proativas para respeitar os direitos humanos e mitigar os impactos ambientais em suas operações e ao longo de toda sua cadeia de valor. Na prática, isso nada mais é do que estender o âmbito das obrigações legais vinculantes das empresas que operam na Europa a todos os provedores ativos em sua cadeia de suprimentos.
Todos os Estados-Membros da UE serão obrigados a incorporar a CSDDD em sua legislação nacional até, no máximo, 2026. Conforme estipulado, as empresas terão que começar a aplicar os requisitos em 2025 ou 2026. O cronograma de aplicação ainda está em processo de esclarecimento. Desde que foi proposta pela primeira vez em 2022, essa lei ocupou o debate sobre como a UE conseguirá alinhar sua política comercial com os objetivos do Acordo de Paris sobre Mudanças Climáticas. Vale observar que muitos Estados-Membros da UE, como Alemanha, França ou Holanda, já têm uma legislação nacional que vai além da lei adotada pela Comissão.
Duas posições opostas entraram em choque nesse debate. Quem pedia uma regulamentação mais vinculante e com um maior âmbito de aplicação para as atividades de grandes empresas europeias em países em desenvolvimento e quem se nega a aceitar qualquer tipo de regulamentação que inclua aspectos ambientais e sociais. Depois de intensos debates, nos quais a Alemanha, em particular, defendeu um caminho liberal, chegou-se a um acordo de compromisso que, como de costume, resultou em uma lei excessivamente enfraquecida, se comparada à proposta que havia sido aprovada pelo Parlamento Europeu há alguns meses. “Os países da UE fizeram isso novamente: cortaram as regras para apaziguar as grandes empresas, desferindo um golpe na autoproclamada posição da Europa de defensora da democracia e dos direitos humanos”, disse Marc-Olivier Herman, ativista de justiça econômica da Oxfam UE.
Em que consiste a lei aprovada? Em sua última versão, o âmbito de aplicação da CSDDD foi substancialmente reduzido e só inclui empresas com um mínimo de 1.000 funcionários (em vez de 500) e um faturamento de ao menos 450 milhões de euros (em vez dos 150 milhões de euros previstos inicialmente). Alternativamente, as empresas com mais de 250 funcionários e um faturamento de 40 milhões de euros também se enquadram no escopo da Diretiva, desde que 50% de suas receitas sejam provenientes de setores de alto risco, como moda, minerais ou agricultura. Âmbito de aplicação reduzido: segundo as estimativas atuais, isso significa que o número de empresas europeias que serão afetadas pela CSDDD reduzirá em quase 70%. Portanto, o âmbito de aplicação da CSDDD é globalmente mais limitado do que o da lei alemã(LkSG), que não prevê limites de faturamento.
Outra mudança substancial em relação à proposta original é a eliminação do enfoque de setores de alto risco: o conceito de inclusão progressiva de empresas que não cumprem os critérios de alcance, mas operam em setores de alto risco, não está mais previsto na nova versão da CSDDD. A minuta original da CSDDD continha disposições que estipulavam que as empresas com mais de 250 funcionários e um faturamento líquido superior a 40 milhões de euros estariam sujeitas à CSDDD se gerassem ao menos 20 milhões de euros em um setor de alto risco, como florestas tropicais ou zonas costeiras com alta biodiversidade.
Em suma, o texto final da CSDDD foi duramente criticado não só por várias organizações não governamentais (ONGs), mas por empresas importantes que veem nela uma proteção contra a concorrência desleal das empresas chinesas. Argumenta-se que as exigências foram “maciçamente” reduzidas ou diluídas às custas do setor empresarial europeu.
As exportações da América Latina serão reduzidas?
Algumas empresas europeias que seriam afetadas pela Lei intensificaram, dias antes da aprovação, uma campanha em massa de lobby nos países exportadores. Assim, as empresas importadoras de café e cacau da Alemanha, o segundo maior importador de café do mundo, pintaram um cenário dramático para os produtores latino-americanos. Segundo a propaganda da mídia, o setor cafeeiro alemão presume que o fornecimento de café não será mais garantido a partir do próximo ano, como resultado de um novo regulamento da UE. “Uma escassez ameaça o mercado alemão e europeu. Os preços do café que ainda estará disponível aumentarão consideravelmente”, anunciou a Associação Alemã do Café.
Nada poderia estar mais longe da verdade: em um setor em que os importadores se beneficiam de uma sobreoferta crônica global que lhes permite manipular os preços, não pode haver queda na oferta. No caso do cacau, essa legislação de fato daria aos exportadores latino-americanos uma vantagem comparativa sobre os exportadores africanos, onde o trabalho infantil é generalizado. Por outro lado, o cultivo de café e cacau de boa qualidade só é possível a longo prazo se for realizado em condições de manejo florestal sustentável.
No entanto, não se pode ignorar que a nova legislação europeia também é um desafio para os produtores latino-americanos, não só no setor de matérias-primas. Os fornecedores que são sócios comerciais diretos de empresas da UE deverão das garantias contratuais de conformidade com o Código de Conduta para empresas da UE. Se necessário, deverá elaborar um plano de ação de prevenção, que inclua as garantias contratuais correspondentes dos sócios comerciais, na medida em que suas atividades façam parte das cadeias de valor das empresas da UE abrangidas pela legislação.
A rastreabilidade, entendida como a capacidade de um ator de vincular um produto ou subproduto com informações sobre seu histórico, desde o local de produção até o usuário final, será um instrumento-chave para aumentar e consolidar a sustentabilidade. Já existem soluções digitais que permitem adaptar a rastreabilidade às novas exigências. As informações associadas aos produtos básicos também incluem aspectos de sustentabilidade no local de produção. Isso é muito importante no que diz respeito à perda florestal, que hoje em dia pode ser monitorada continuamente com instrumentos de GPS.
As empresas que querem se manter na vanguarda já podem dar os primeiros passos. Um dos mais importantes é a digitalização da rastreabilidade para garantir a transparência a baixos custos. É importante analisar as novas exigências, garantindo o compromisso dos importadores com os novos padrões de qualidade. Em todo caso, será necessário aprofundar o conhecimento sobre os próximos passos legislativos da UE para identificar quais de seus parceiros comerciais se enquadram no escopo da nova legislação e iniciar um diálogo com eles. Igualmente importante é a cooperação entre governos e empresas exportadoras para garantir a conformidade com as novas exigências. É bem possível que, nos próximos anos, o escopo e a profundidade da lei se amplie. É melhor estar preparado para essa mudança, que seria do interesse de todos e não apenas de alguns.
Autor
Doutor em Economia e pesquisador do Instituto SUEDWIND (Alemanha). Foi pesquisador sênior do Depto. de Política de Desenvolvimento do mesmo instituto e representante de Alemania en la rede européia não estatal de desenvolvimento CONCORD.