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Bolívia. Luis Arce: o evismo sem Evo

“Quando estou sozinho à noite e descanso, é quando começo a pensar nas questões e a pensar no que decidir. Foi sempre assim. Eu decido” (Evo Morales in Mayorga 2019, 150).

Um ano após a eleição de Arce como presidente do Estado boliviano, vale a pena perguntar se a sua forma de governar é ou não semelhante à de Evo Morales (2006-2019). À primeira vista, parece que sim: Arce, tal como Evo, tem um discurso agressivo para com os opositores que acusa de serem sem pátria, de golpistas sem redenção ou sanção, e de assassinos em massa à solta e impunes que só podem ser perseguidos e encarcerados. Nesse sentido, o seu perfil como economista e professor universitário, como homem de fórmulas matemáticas, a sua imagem como ministro da economia de Evo, foi ofuscado pelo aparecimento desta versão evista de Arce.

Mas para além dos discursos inflamados de Arce, as suas insistentes recordações dos meses do governo “de fato” de Jeanine Áñez, Arce realmente não pode, por mais que tenha tentado, ser a melhor versão do evismo. Eu postulo que esta é a causa dos problemas e tribulações de um governo que, em menos de um ano, recuou em várias iniciativas políticas, sendo uma das mais notáveis a Lei contra a legitimação dos lucros ilícitos.

Quando Morales governou, tinha sob o seu comando não só o mais alto cargo do país, mas também a liderança do seu partido, MAS-IPSP, mais a liderança das nove federações de produtores de coca do Chapare. Em outras palavras, ele tinha (todo) o poder do Estado, todo o poder do partido e o controle sobre um dos sindicatos mais importantes do país. Em contraste, Luis Arce tem apenas parte do poder governamenta, pouquíssima influência sobre o partido que segue nas mãos de Morales e não tem alcance junto da base camponesa, habituada, ou deslumbrada ou convencida pela figura de Evo.

Em segundo lugar, como observa Fernando Mayorga (2019), uma característica do estilo de governo de Morales era a concentração da tomada de decisões na sua pessoa. Embora Morales ouvisse a sua base, os seus ministros e atendesse os conselhos dos seus assessores, era ele quem tomava a decisão final, muitas vezes em total desrespeito à opinião do seu círculo mais próximo.

Morales enfrentava os conflitos, fazendo-os durar, os arrastando, ignorando, desprezando, e só quando tinha os protestos às portas do Palácio do governo é que recuava, retrocedia na sua decisão e concordava com as exigências. Foi então que, perante os seus adversários (esgotados pelo cansaço da longa luta), anunciou que ia voltar atrás na sua decisão frente ao o discurso que tinha ouvido do povo, do qual, numa onda populista, se sentia o intérprete. 

Pode ser feita referência à mobilização de médicos contra a nova Lei do código penal que durou quase três meses (2017-2018) e envolveu a presença permanente de médicos nas ruas e a participação decisiva de outros setores. Só quando Evo viu que a recusa do governo era insustentável, é que procedeu à revogação da Lei.

Por outro lado, Arce, ao primeiro vento contrário, à primeira ameaça de mobilização, retira-se, entra em pânico, procura estabelecer ou restabelecer a paz. Em outubro deste ano, o conflito desencadeado pela Lei sobre a legitimidade dos lucros ilícitos durou apenas uma semana: o mero anúncio de que os atores estratégicos, como os ministros cooperativistas e os sindicalistas juntaram-se às mobilizações, fez o governo parar o tratamento da Lei por parte da Assembleia legislativa.

Em todo o tempo Morales faz política, nos seus tempos livres, quando pratica esportes ou joga futebol contra adversários que, curiosamente, perdem sempre; tem uma longa experiência em conflitos, em lutas de rua e de estrada e, apesar de ostentar um invejável gabinete de troféus com graus de Doutor honoris causa, apenas obteve o seu bacharelado. Por outro lado, Arce não teve uma carreira política, mas sim acadêmica, não saiu de nenhuma pedreira sindical, nem mesmo da alta liderança masista, gosta de dar aulas e é um eficiente burocrata de carreira. Se Evo tem falta de salas de aula, Arce tem falta de ruas. 

Em suma, esta é uma explicação parcial. O contexto político e social também desempenha um papel. Morales governou um país onde a oposição era um mero balão de ensaio das elites econômicas assustadas com o surgimento de um partido populista. Quer devido à aprovação da nova constituição em 2009, quer devido ao seu fracasso no referendo de retirada de 2018, a oposição tinha sofrido uma derrota moral da qual lutava para sair. Além disso, teve uma sociedade satisfeita com os efeitos da bonança econômica e a mobilidade social a ela associada.

Em contraste, o contexto político do governo de Luis Arce é completamente diferente. Enfrenta uma séria derrota política com a saída de Morales do poder em novembro de 2019. Embora na narrativa do MAS (da qual Arce se tornou um emissor entusiasta) tenha ocorrido um golpe de Estado engendrado por uma elite oligárquica que manipulou as massas desavisadas, na realidade, por detrás do revés nas decisões de Arce está o medo de que, tal como aconteceu em 2019, o conflito venha a desencadear em um outro maior que, novamente, colocará o governo em xeque.

Em suma, há três elementos que problematizam a gestão de Luis Arce. Em primeiro lugar, Arce não consegue concentrar as decisões; de fato, ele só tem controle total sobre a área econômica.  Em segundo lugar, falta-lhe a experiência política para poder gerir uma iniciativa política controversa e levá-la a cabo e, em terceiro lugar, não parece ter muito impacto nos movimentos sociais simpáticos ao MAS.

O Presidente Arce precisa urgentemente dar identidade e um projeto político ao seu governo; ele pode ser o líder que irá, por exemplo, empreender uma profunda reforma do sistema judicial boliviano, até agora afogado em corrupção, ineficiência e submissão ao poder governamental. Isso exigirá o apoio de uma série de atores até agora ignorados. Cada político procura deixar um testemunho do seu tempo no poder; continuar sob os parâmetros do evismo não parece ser suficiente.

*Tradução do espanhol por Dâmaris Burity 

Foto de Brasil de Fato

Autor

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Cientista político. Profesor e investigador de la Universidad San Francisco Xavier (Sucre, Bolivia). Doctor en Ciencias Sociales con mención en Estudios Políticos por FLACSO-Ecuador.

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