A nível mundial, é cada vez mais comum encontrar líderes populistas à frente de governos eleitos popularmente. A América Latina não é exceção; a democracia contemporânea e o populismo parecem mostrar tensões cujas derivações podem ser diversas, como exemplificado por Nayib Bukele (El Salvador) e Javier Milei (Argentina).
A democracia não é só competitiva e representativa, mas também plural. Isso significa que várias vozes devem coexistir; quando só uma existe, ou as outras são silenciadas, a pluralidade desaparece e, com ela, o verdadeiro espírito democrático. Portanto, em uma democracia deve haver: governo e oposição; uma multiplicidade de partidos políticos; diversidade nas fontes de informação; liberdade de expressão, culto e outras formas de manifestação dessa pluralidade.
O problema é que os líderes e partidos populistas, embora aceitem amplamente as regras do jogo democrático, têm uma retórica que tensiona o componente pluralista da democracia e apresenta uma divisão irreconciliável entre um “nós” e “eles”. Um nós que, à luz de sua visão de mundo, seria legítimo e um eles ilegítimo, corrupto e deve ser marginalizado. Em outras palavras, para a visão populista, há uma “só” visão legítima: a sua própria.
O modelo Bukele
Na democracia, há um cenário que inclina a balança para o predomínio de uma “voz única”: o governo majoritário. Trata-se de um cenário em que a força governante obteve um nível de respaldo eleitoral tal que possui as maiorias necessárias para promover sua agenda de governo. Isso basicamente implica não só ter o controle do executivo, mas também do legislativo.
Portanto, se um líder “populista” se encontrar em tal situação, poderá seguir adiante em sua agenda “antagônica” sustentando sua retórica crítica a “eles” sem maiores custos reais, pois não existirá uma oposição forte. O decisionismo personalista é muito comum em um cenário como esse, o que, para muitos, implica uma “erosão” da qualidade democrática.
O governo de Nayib Bukele ingressa nessa categoria. Diferente do tradicional bipartidarismo salvadorenho, ele obteve apoio que lhe permitiu vencer confortavelmente em 2019 e ter um governo majoritário e personalista. Ademais, promoveu, sem grandes vetos (embora com denúncias), políticas de restrição de movimento durante a pandemia e de enfrentamento ao crime organizado e, graças à popularidade alcançada, acabou sendo reeleito, ainda que forçando a constituição, em 2024.
Nesse período, a qualidade democrática salvadorenha foi corroída. De acordo com o índice da Freedom House, a pontuação de El Salvador quando Bukele assumiu o cargo era de 67/100, mas a última medição, em 2024, dá um valor de 53/100, o que o torna um país “parcialmente livre”.
O caso de Milei
Em contextos de maior fragmentação política e sem a existência de um governo majoritário, a tensão entre populismo e democracia assume outra forma. Isso ocorre porque o conflito agora é explícito entre os setores antagônicos. Por quê? Porque o “eles”, ou ao menos uma parte desse grupo, tem maior peso institucional e pode se tornar um veto (se as instituições democráticas funcionarem adequadamente) aos objetivos políticos imediatos do governo.
Isso é lógico, esperado e até mesmo saudável em uma democracia “plural”, mas pode claramente entrar em conflito com a cosmovisão política populista, mais ligada à absolutos do que a resultados intermediários.
Há diferentes alternativas para lidar com essa tensão, e duas delas são claramente evidentes no governo de Javier Milei. A primeira é manter o antagonismo, o que pode levar à falta de consenso – gerando paralisia institucional – e/ou à busca de uma maior concentração de poder no Executivo, evitando o Congresso e favorecendo decisões discricionárias. Essa última prática é normalmente associada a democracias de menor qualidade institucional, como as chamadas “democracias delegativas”.
Durante seu primeiro ano de governo, a relação com o Congresso Nacional foi especialmente conflituosa, a ponto de o partido governista ter descrito o legislativo como um “ninho de ratos”. Ademais, a não apresentação do Orçamento 2025 antecipa uma maior discrição na alocação de recursos para o próximo ano na Argentina.
A segunda possibilidade é a negociação e a busca de consenso, algo desejável em uma democracia fragmentada. Se isso ocorrer, os extremos devem se enfraquecer e os resultados intermediários devem prevalecer. Isso não corroeria a democracia, mas o antagonismo populista (para muitos, isso faz parte da chamada “resiliência democrática”).
Esse é o segundo lado, mais político, do governo de Milei. Embora tenha mantido sua retórica de “nós contra eles” em vários âmbitos, em determinados momentos buscou gerar consenso. No caminho às urnas, promoveu uma “tabula rasa” com parte da oposição com a qual antagonizava até então. Essa “oposição dialoguista” foi o que lhe permitiu, no contexto legislativo conflituoso mencionado acima, aprovar algumas leis.
O que está claro é que, sem esses acordos, por mais breves que sejam, o governo de Milei não teria tido nenhuma chance de prosperar na arena legislativa, por ser governo minoritário. Ciente disso, seu discurso antagônico deveria ter dado lugar ao diálogo e ao acordo, pelo menos em parte e com alguns setores, a fim de manter a governabilidade.
À guisa de reflexão final
Seja qual for o caminho eleito, fica clara a incompatibilidade entre a democracia de qualidade e a retórica antagônica do populismo. O decisionismo personalista, o conflito irreconciliável e a busca de acordos geram tensões com alguns desses aspectos. Na prática, ou prevalece a “democracia” ou o “populismo”, mas não ambos.
Entretanto, nos casos mencionados, onde a democracia enfrenta essas tensões seja por decisionismo ou conflito com “eles”, os governos alcançaram resultados visíveis alinhados com suas agendas. Por exemplo, a redução da insegurança em El Salvador ou a estabilização macroeconômica na Argentina, o que lhes permite manter altos níveis de popularidade.
Nesse marco, o que os cidadãos priorizam hoje? Os resultados imediatos, mesmo que sejam obtidos à custa de tensões institucionais, ou o fortalecimento da qualidade da democracia em seus países? O dilema está na mesa e continuará a ser fundamental no futuro.
Tradução automática revisada por Isabel Lima
Autor
Cientista político, professor e pesquisador da Universidade de Buenos Aires, Argentina. Doutor em Ciências Sociais (UBA) e Mestre em Políticas Públicas (UTDT).