A América Latina é, hoje, palco de disputas de grandes corporações pelo controle da água. Conhecida como o “continente das águas”, a região sofre a pressão pela privatização de mananciais e serviços de saneamento, não sem movimentos de resistência como nos casos da Bolívia, Argentina, do México e, mais recentemente, Chile e Brasil.
No dia 30 de abril, a maior empresa pública do estado do Rio de Janeiro, a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE), teve seus serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário leiloados para grandes corporações financeiras. Como se não bastasse a privatização de um dos serviços públicos mais essenciais à vida e em plena pandemia, o processo está repleto de inconsistências e irregularidades técnicas, jurídicas e sociais.
O que implica privatizar a CEDAE?
A venda é, na verdade, uma contrapartida exigida pelo governo federal dentro do plano de recuperação fiscal do estado do Rio, assinado em 2017. Segundo o modelo de concessão do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), as concessionárias ficariam responsáveis pela distribuição de água, coleta e tratamento do esgoto. Já os custosos serviços de captação e tratamento de água permaneceriam com a CEDAE.
As concessionárias vitoriosas (AEGEA e IGUÁ) manteriam, a princípio, o valor da tarifa atualmente cobrada pelo serviço de água e esgoto e pagariam à CEDAE o valor de R$ 1,70 por metro cúbico de água. Esse valor é extremamente baixo, não cobrindo a parte de investimento para a melhoria e ampliação da oferta de água.
Assim, as concessionárias garantiriam um subsídio, já que os investimentos na produção de água permaneceriam com a parte pública, onerando a CEDAE que até aqui tem sido uma empresa superavitária.
A manutenção do valor atual da tarifa, embora prevista, não está de forma alguma assegurada. No contrato de concessão estão indicados “riscos” que podem levar ao “reequilíbrio econômico-financeiro do contrato”, incluindo aí a “alteração no valor das tarifas”. Riscos relacionados, por exemplo, à “disponibilidade hídrica no sistema”, que tem grandes chances de ocorrer, entre outros fatores, pelo próprio debilitamento financeiro da CEDAE, que seguirá na produção da água.
Ironicamente, as concessionárias poderão responsabilizar a CEDAE, que terá sua capacidade operacional profundamente impactada pela privatização, por eventual aumento na tarifa.
A AEGEA, ganhadora no leilão dos blocos que reúnem as zonas sul, norte e centro do Rio e municípios do interior e da baixada fluminense, é a concessionária com a maior tarifa do Brasil. Ela controla a PROLAGOS, responsável pelo saneamento de municípios na região dos lagos no Rio, que cobrava em 2019 uma tarifa de água domiciliar de R$ 95 por 10m3, mais do que o dobro cobrado pela CEDAE.
O contrato prevê também a universalização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário até 2033. Tal meta seria cômica se não fosse tragicamente inverídica. Sobre o enorme déficit de saneamento nas áreas de favela e periferia, não há no contrato garantias reais de investimento.
Há, na verdade, uma diferenciação entre “áreas irregulares elegíveis e não elegíveis” em termos de investimentos, porém não se explicitam os critérios de elegibilidade, deixando ao arbítrio das concessionárias e do gestor público de plantão.
A quem interessa a privatização?
Toda essa situação é reforçada pelo fato de que as donas das concessionárias vitoriosas são instituições financeiras, voltadas a remunerar seus acionistas. No caso dos controladores da AEGEA, chama a atenção não apenas a Grua Investimentos, mas também o Fundo Soberano de Cingapura (GIC) e o Banco Itaú.
O que o Banco Itaú, que bateu mais um recorde de lucratividade no primeiro trimestre de 2021, pretende ganhar com o serviço de saneamento na baixada fluminense, onde é enorme o déficit deste serviço? Como resposta, além do mencionado, acrescentaríamos o empréstimo anunciado pelo BNDES de R$ 17 bilhões para financiar a outorga de R$ 22,7 bilhões oferecida pelas concessionárias.
No caso da IGUÁ, vencedora do bloco que reúne Barra da Tijuca, Jacarepaguá e Cidade de Deus e mais os municípios de Miguel Pereira e Paty do Alferes, seus controladores são os fundos de pensão de trabalhadores públicos canadenses: o Canada Pension Plan Investment Board (CPPIB) e o Alberta Investment. Isso mesmo, as aposentadorias dos trabalhadores públicos canadenses sendo financiadas pela exploração de um serviço essencial à população do Rio de Janeiro.
Mais do que privatização, estamos diante de uma predação. A predação não segue, apenas, dentro das formalidades do direito contratual. Recentemente, foram denunciados indícios de fraude no leilão da CEDAE.
As supostas concorrentes no leilão, AEGEA e IGUÁ, possuíam posições compartilhadas em um terceiro consórcio, REDENTOR, que também participou do leilão sem arrematar nenhum bloco, levantando a suspeita de uma concorrência fraudada. Tal suspeição levou os sindicatos de trabalhadores da CEDAE a acionarem o Ministério Público e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).
O BNDES, responsável por modelar a concessão, tem participação de 11% no capital da IGUÁ, em uma clara situação de conflito de interesses. O ITAÚ, por sua vez, adquiriu 10% da AEGEA apenas três dias antes do leilão, no mesmo dia em que o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, decidiu suspender preventivamente qualquer decisão judicial que viesse a impedir o certame.
Os contenciosos jurídicos persistem. O governador do estado do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, aliado do governo de Jair Bolsonaro, determinou a realização do leilão mesmo com a decisão, na véspera, da Assembleia Legislativa Estadual determinando a sua suspensão. Os sindicatos também encaminharam ação junto ao Tribunal Superior do Trabalho, questionando a ausência de um plano que avalie o impacto da concessão nos contratos de trabalho, já que se prevê a demissão de mais de 4 mil trabalhadores.
Sob a liderança da Internacional dos Serviços Públicos, organizações sociais e sindicais do Brasil e Canadá têm se mobilizado contra a privatização. A maior central sindical dos trabalhadores públicos canadenses, o Canadian Union of Public Employess (CUPE), se posicionou publicamente, repudiando a presença dos fundos de pensão canadenses na privatização da CEDAE. Em 11 de junho, 200 organizações brasileiras e canadenses encaminharam ao primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, e aos dirigentes dos fundos de pensão CPPIB e Alberta, carta apresentando as irregularidades e solicitando que a IGUÁ não assine o contrato de concessão.
Sem dúvida, os contratos não devem ser firmados até que as insuficiências e suspeições que marcam a privatização da CEDAE sejam devidamente sanadas e esclarecidas. Até porque, a sanha privatista do atual governo, que mira agora a Eletrobras e os Correios, deverá seguir o mesmo padrão, buscando atrair instituições financeiras interessadas em especular com o fundo público e os direitos da população.
Autor
Cientista Político. Professor da UNIRIO e da PUC-Rio. Coordenador do Instituto Mais Democracia. Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ (atual IESP/UERJ).