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Chile: o fim da clivagem ditadura–democracia

A eleição presidencial de 2025 confirma um profundo realinhamento político no Chile: a histórica clivagem entre ditadura e democracia já não estrutura o voto, tendo sido substituída por um novo eixo de conflito que emergiu do ciclo iniciado em 2019.

O que vimos neste domingo? Além do resultado — contundente e sem apelação —, o primeiro passo é reconhecer o funcionamento do sistema: em pouco menos de duas horas após o encerramento das urnas, o Serviço Eleitoral já havia contado cerca de 97% dos votos. Nesse momento, o conservador José Antonio Kast ultrapassava os 58,2%, com mais de sete milhões de votos. Enquanto alguns escreviam nas redes sociais “se acaBoric” (acabou), outros ironizavam com “quatro anos de Kastigo”. Os principais atores políticos, entretanto, demonstraram um comportamento republicano e um compromisso inquestionável com a democracia.

Mas o verdadeiro significado desta eleição está na irrupção de uma nova clivagem que organizou o voto. Pela primeira vez desde o retorno à democracia, o Chile tem um presidente que votou Sim no plebiscito de 1988 — para decidir se Pinochet continuaria ou não no poder — e que, além disso, participou ativamente da campanha de Pinochet. O ex-presidente Piñera, lembremos, havia votado Não. Esse fato, por si só, teria sido impensável durante décadas, não porque a direita não pudesse vencer — já havia vencido —, mas porque a clivagem ditadura/antiditadura funcionava como um limite estruturante simbólico. Hoje, esse limite não organiza mais a política chilena, como argumento em uma pesquisa recente intitulada “Restauração vs. Refundação: Como o ciclo 2019-2023 reconfigurou o conflito político chileno”.

A eleição de 2025 não marca só uma mudança de governo; marca algo mais profundo: o deslocamento do eixo que ordenou a competição política por mais de 25 anos. A evidência territorial é eloquente. O mapa eleitoral desta eleição se assemelha muito mais ao plebiscito de saída de 2022, a partir do qual foi rejeitada a proposta de nova Constituição elaborada por uma convenção majoritariamente progressista — e, em menor medida, ao texto constitucional de 2023 — do que a qualquer votação associada à transição democrática. Os municípios que votaram pela rejeição em 2022 voltaram a se alinhar de forma quase idêntica em 2025. Em contrapartida, o peso explicativo do plebiscito de 1988 se dilui quando se incorpora o ciclo recente.

Isso não é uma metáfora nem uma intuição impressionista: é um realinhamento territorial observável. Quando se comparam sistematicamente as eleições de 1988 até hoje, o padrão é claro. A votação de 2025 replica quase ponto por ponto a geografia do plebiscito de 2022. A velha clivagem democracia-ditadura sobrevive como identidade simbólica, mas deixou de estruturar de forma decisiva a competição eleitoral.

O que a substitui? Um eixo distinto, nascido do ciclo iniciado em 2019: restauração versus refundação. Esse novo eixo não é definido por posições em relação à ditadura, mas por interpretações opostas da explosão social, da ordem pública e do processo constituinte. Para o polo restaurador, a explosão representou uma ruptura da ordem, uma erosão da autoridade do Estado e uma deriva institucional que deve ser corrigida. Para o polo refundador, foi a expressão legítima de um mal-estar acumulado e a evidência de um modelo esgotado que exigia transformações profundas.

A campanha presidencial mostrou isso com clareza. Tanto o direitista opositor Kast quanto a governista de esquerda Jara estruturaram seus diagnósticos em torno do ciclo 2019-2023, não em torno do passado autoritário. A diferença estava na ênfase: Kast falou, acima de tudo, de “como” alcançar a ordem — segurança pública, controle, capacidade estatal —, enquanto Jara se concentrou no “o quê” da transformação — direitos sociais, papel do Estado. Mas nenhum dos dois organizou sua narrativa a partir do eixo ditadura/democracia. Sua virtual ausência é tão reveladora quanto sua antiga onipresença.

Esse deslocamento não se limita aos discursos. Ele também é observado nos alinhamentos da elite. Figuras historicamente associadas ao Não de 1988 apoiaram candidaturas situadas no polo restaurador. O caso mais surpreendente é o do ex-presidente Eduardo Frei Ruiz-Tagle: filho de um presidente assassinado pela ditadura e símbolo da transição, hoje ele apoia posições impensáveis sob a antiga divisão. A partir da teoria comparada, esse tipo de “travessia do Rubicão” é um sinal clássico de enfraquecimento estrutural de um eixo histórico.

Alguns dirão que isso é apenas alternância, desaprovação do governo cessante ou voto de punição. Mas essa explicação não se encaixa nos dados. A alternância produz oscilações; não gera correlações territoriais tão altas e persistentes entre eleições de diferentes tipos, nem reordena simultaneamente o discurso de ambos os blocos em torno de um mesmo ciclo interpretativo.

O que estamos vendo é outra coisa: é, possivelmente, uma clivagem em formação. Não totalmente institucionalizada, ainda sem ancoragem organizacional completa, mas já suficientemente potente para estruturar o voto, as campanhas e as estratégias da elite.

Convém parar em um ponto. Este eixo não descreve projetos governamentais fechados, nem nos permite antecipar futuras trajetórias democráticas. Restauração e refundação não são equivalentes à moderação ou radicalização, nem a mais ou menos democracia. São quadros interpretativos através dos quais atores políticos e eleitorados processam o ciclo iniciado em 2019: diferentes diagnósticos de ordem, legitimidade e mudança. Confundir este eixo com uma avaliação normativa dos governos seria um erro.

A referência aos “30 anos” sintetiza com clareza este novo eixo. No Chile, essa expressão popularizou-se durante a revolta social de 2019 com o lema “não são 30 pesos, são 30 anos”, aludindo não ao aumento específico das tarifas do transporte público, mas às três décadas que se seguiram ao fim da ditadura. Esse ciclo foi marcado por estabilidade institucional, crescimento econômico e reformas graduais, mas também por desigualdades persistentes e um crescente distanciamento entre cidadãos e elites. Para alguns, a revolta representou uma ruptura injustificada de uma ordem que havia produzido progressos substanciais; para outros, foi a prova de um modelo esgotado que exigia transformações profundas. Essa diferença não é anedótica: ela estrutura a competição política atual de forma muito mais decisiva do que as posições contra o regime autoritário do passado.

A eleição de 2025 não encerra esse processo. Mas deixa uma coisa clara: o eixo ditadura-democracia não é mais o princípio organizador central da política chilena. O país debate atualmente como interpretar e resolver — ou aprofundar — a crise que começou em 2019. Ler esse cenário como uma mera repetição das clivagens da transição, ou como se ainda estivéssemos em 1988, é simplesmente não compreender a natureza das tensões políticas atuais.

Tradução automática revisada por Isabel Lima

Autor

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Cientista político. Diretor do Instituto de Ciência Política da Pontifícia Univ. Católica do Chile. Doutor em C. Política pela Univ. de Notre Dame (Indiana, E.U.A.). Autor de "Citizenship and Contemporary Direct Democracy" (Cambridge University Press, 2019).

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