Em ditadura, as eleições – chamemos-lhes de votação – servem para algumas coisas. Embora não sejam, como ocorre na democracia, mecanismos para renovar pacífica e periodicamente o poder, estas eleições servem como adorno para a validação formal – dentro e fora do país – do governo autoritário. As votações também servem como ferramentas para cooptar e mobilizar simpatizantes, assediar e desmoralizar os opositores e informar o próprio governo do real apoio popular.
Hoje, 26 de março, acontecerão em Cuba as eleições gerais, cujo propósito nominal é renovar as 470 cadeiras da Assembleia Nacional do Poder Popular, órgão legislativo mais alto (novamente, nominal) do país caribenho. Oito milhões de eleitores registrados recebem uma cédula onde figuram, já designados, os deputados que representarão seu município. Terão poucas opções: votar em toda a lista, votar em um da lista ou, no caso dos municípios com três ou mais deputados, votar em alguns e descartar outros. Não há possibilidade de rejeitar a lista completa. Não existe, portanto, concorrência alguma. Vota-se, mas não se elege.
Para muitos, dado o contexto político de um regime leninista fechado ao escrutínio externo, tal processo carece de interesse. De fato, na Cuba totalitária de uma década atrás, entre 95 e 98% do eleitorado registrado teria votado, o voto nulo não teria superado 3% e mais de 90% teria aprovado a lista completa sem sequer se preocupar em marcar um ou outro candidato. Um simples ritual para confirmar a legitimidade da ditadura. Não votar seria visto como um sinal de dissidência, como uma maneira fácil de “marcar” um oponente, e assim a abstenção seria sempre mínima.
Entretanto, Andreas Schedler (La política de la incertidumbre en los regímenes electorales autoritarios, México, Fondo de Cultura, 2016) explica que as eleições sob ditadura podem ser para os cidadãos arenas de questionamento e mobilização contra as autoridades. Adam Przeworski nos lembra (¿Por qué tomarse la molestia de hacer elecciones, Pequeño manual para entender el funcionamiento de la democracia, Siglo XXI Editores, Buenos Aires, 2019) que estas eleições não competitivas seguem invocando o povo como a fonte última do poder, que buscam mobilizar em apoio aos ditadores.
Uma vez que estes objetivos são inalcançáveis e os números caem, o enfraquecimento do controle político abre as portas ao desafio opositor. No caso cubano, o declínio paulatino da participação nestas votações – que atingiu quase metade do eleitorado na capital, entre abstenção e voto nulo nas eleições locais de novembro passado – é reflexo de tendências demográficas, com seu correlato político.
Existem exemplos de aumento da abstenção no contexto de eleições autoritárias. No Cazaquistão, uma antiga república da União Soviética cujo povo nunca viu um processo eleitoral livre e justo em toda sua história, o regime liderado por Kassim Khomart Tokayev, sucessor do ditador pós-soviético Nursultan Nazarbayev, tem enfrentado um abstencionismo cada vez maior nas grandes cidades. Nas eleições legislativas de 19 de março, a participação caiu para pouco menos de 53%. O comparecimento reduziu em todo o país e na capital, Almaty, apenas 25% do eleitorado registrado votou.
Retornando a Cuba, vemos hoje um país dividido. Podemos distinguir três terços na atual sociedade cubana em termos de sua posição à conjuntura política e, sobretudo, ao processo eleitoral. Eles resumem diversos fatores sociais, geracionais e regionais que atravessam todos os segmentos da população cubana. Recuperando democraticamente uma velha terminologia norte-coreana, este panorama – retirado da somatória de várias pesquisas, entrevistas e dois grupos focais realizados em outubro passado na ilha – se apresenta do seguinte modo:
Os Leais: neste estrato entram os que, simpatizantes ao governo, votam em seu apoio. O músculo do apoio social à ditadura é composto de pessoas mais velhas ou de meia-idade (que nasceram e cresceram em épocas melhores do socialismo, influenciados por anos de propaganda contínua), em muitos casos com um baixo nível de renda, informação e cultura política; junto a membros da burocracia, militares e empresários e suas famílias.
Os Vacilantes: estes oscilam entre apoiar ou rejeitar o governo e são a facção politicamente mais passiva e desmobilizada da população. Um eleitorado que, em um regime democrático, alternaria entre diferentes partidos ou candidatos e que, em última instância, acaba definindo uma eleição. Em um contexto como o de Cuba, é quem hesitam entre votar e se abster.
Muitos deles votam com o único propósito de não se marcar como dissidente, enquanto os que se abstêm o fazem mais por cansaço do que por rejeição consciente e enérgica da ditadura. No caso de decidirem votar, é mais provável que emitam algum voto que quebre a uniformidade da lista completa (voto seletivo para alguns candidatos, votar em branco, alterar a cédula para anulá-la, etc.). Trata-se do estrato mais plural, com uma faixa etária que vai de jovens adultos até a meia-idade, incluindo setores privados e com adequados níveis de educação.
Os Hostis: trata-se do cidadão opositor ao regime, decidido a não votar com o objetivo consciente de mostrar sua insatisfação. Costumam tentar convencer outras pessoas a não votar. O grupo etário mais vocalmente opositor se concentra na juventude, grupos intelectuais e nas grandes cidades, embora, novamente, aqui possamos encontrar pessoas de todas as idades. Há localidades do país com raízes opositoras que se enquadram nesta categoria.
Sendo as eleições um sistema ou um processo e não só o dia de votação, há demasiada evidência ex ante de ilícitos eleitorais no país. Nas últimas semanas, a ditadura tem usado os 3 C’s – controle, cooptação e convencimento – para garantir uma votação favorável. Ameaças aos (ilegais) grupos de observadores e jornalistas independentes, mobilização de eleitores porta a porta, marchas de apoio com funcionários e feiras de venda de alimentos e bens deficitários mostram isso.
Dificilmente a obterá níveis próximos aos antigos 90% típicos do modelo soviético. Parece haver um consenso – a partir do cruzamento dos resultados anteriores e pesquisas recentes – de que 60 ou 70% de participação a nível nacional é um resultado plausível, com níveis inferiores nas capitais. Algo que, em condições de monopólio de poder e propaganda, questiona a falta de pluralismo e representação do regime cubano.
No entanto, a sombra da fraude tout court, na totalização dos votos, aparece no horizonte. Ocorreu na RDA em 1989, pouco antes da queda do Muro, e também nas eleições para a Constituinte na Venezuela, em 2017. Diante a exposição de seu descrédito, os ditadores corrigem as cifras para mostrar um apoio avassalador inexistente. A lógica simples leva a uma conclusão: por que um regime como o cubano, que se fecha ao escrutínio independente e realiza um processo no qual a observação é criminalizada, reconheceria publicamente e sem reservas a única forma de revés eleitoral que pode sofrer?
Diante deste panorama, as denúncias dos observadores independentes e os relatos cidadãos de seu (não) voto serão um indicador aproximado da verdade sequestrada. No final, apesar do que o regime tenta nos vender, a voz e a saída (Hirschman dixit) seguem crescendo em Cuba, diante a uma lealdade minguante.
Felipe Galli (1999, Gualeguaychú, Entre Ríos, Argentina). Estudante de Ciências Políticas na Universidade de Buenos Aires, cofundador da mídia Carta Política, membro da iniciativa Contexto Cubano.
Autor
Doutor em História e Estudos Regionais, Universidade Veracruzana (México). Mestrado em Ciência Política, Universidade da Havana. Especializado em regimes autocráticos na América Latina e Rússia.