O Uruguai é um caso sui generis de seu gênero. Um país que nasceu como resultado da intervenção de uma potência, destinado a ser um Estado-tampão entre dois grandes que, durante seus primeiros anos, tentaram constantemente se apoderar de seu escasso território. E, apesar de tantos embates, o Uruguai conseguiu se manter graças aos feitos heroicos de uma classe política que (re)construiu uma democracia sólida. Em seus quase 200 anos de história, persiste o legado de vários líderes, mas nenhum teve a repercussão internacional de José Mujica.
O falecimento de José “Pepe” Mujica deixa a esquerda uruguaia órfão. A evolução inevitável da existência humana levou a último grande referência do Frente Amplio. Uma retirada que entristece um povo inteiro, mas que não pegou ninguém de surpresa. Mujica havia anunciado em abril de 2024 que sofria de um tumor no esôfago, um diagnóstico que, junto a sua idade avançada, o deteriorou em poucos meses. Embora o físico não o acompanhasse, sua mente continuou lúcida e estratégica como sempre. Nesse tempo, planejou, de maneira silenciosa, sua última jogada, que resultou na reconquista do poder presidencial para Frente Amplio. E em uma América Latina onde emergem liberalismos de ultra direita, são especialmente relevantes as contribuições finais dessas figuras que, em tempos passados, impulsionaram a célebre era progressista.
Como é possível que um ex-guerrilheiro tenha se tornado um ícone mundial? Por meio da redenção. Mujica jamais negou seu passado como membro do movimento armado tupamaros, inclusive reconhecia que o povo poderia julgá-lo e condená-lo por isso. No entanto, sofrer os estragos do governo de fato fez dele um verdadeiro democrata, uma imagem que era muito mais forte do que seus embates anteriores. Pode-se criticar seus meios, mas nunca negar que sua luta foi contra o autoritarismo, não em detrimento da vontade do povo. Os cidadãos uruguaios entenderam isso e, embora muitos não o tenham perdoado, não ficaram cegos. Uma vez livre e democrático, Mujica estava destinado a se tornar um homem importante.
O fenômeno de Mujica, às vezes inexplicável, é também o produto de uma esquerda que soube se estabelecer com o tempo. O Uruguai se uniu tardiamente à virada progressista da região. Em um país tradicionalmente governado pela centro-direita, a vitória avassaladora de Tabaré Vázquez em 2004 foi uma prova de fogo para Frente Amplio. Para muitos, a ascensão dessa coalizão foi o resultado das administrações anteriores, desgastadas pela crise econômica e sem energia para reconstruir o país. Assim, nasceu um novo projeto, um experimento cheio de esperança, que nos anos seguintes provou seu êxito e dobrou a aposta, vencendo as eleições novamente com seu candidato mais atípico: “el Pepe”.
Diferente de Vázquez, um socialista tecnocrático, Mujica era essencialmente um animal político. Carecia de formação profissional, mas também não a necessitava. Durante seu período de confinamento em meio à última ditadura (1973-1985), esse homem rude passou quase sete anos sem ler um livro e, em suas próprias palavras, evitou “cair na loucura” fazendo amizade com sua própria mente. Pensar permitiu-lhe gerar uma visão particular, não só sobre política, mas como filosofia de vida.
Era famoso por seu altruísmo, o que lhe rendeu o apelido de “o chefe de Estado mais humilde do mundo”, mas sua simplicidade pessoal não significava uma gestão apática. Seu governo concentrou-se em gerar um verdadeiro estado de bem-estar social, realizando reformas como a aprovação da interrupção voluntária da gravidez, a legitimação do casamento igualitário e a legalização da maconha. Quanto às suas ações na esfera internacional, tornou o Uruguai em um aliado dos direitos humanos: reconheceu a soberania do Estado Palestino, acolheu refugiados sírios e até recebeu detentos da prisão de Guantánamo. Quase três governos depois, mesmo um de sinal contrário, nenhuma de suas políticas sociais sofreu qualquer retrocesso.
Mujica silenciou seus detratores com suas ações políticas, sim, mas acima de tudo com uma postura contra o ódio. Em seus últimos anos, o ex-presidente misturou mensagens de tolerância com resiliência, sem nunca perder seu discurso característico. Foi uma referência para aqueles que compartilhavam de sua ideologia, um adversário de seus opositores, mas nunca um inimigo, nem mesmo de seus repressores. Foi visitado por muitos, desde amigos, como o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, ícones, como a premiada atriz Glenn Close, até figuras polêmicas, como o rei emérito da Espanha, Juan Carlos I, que ele fez sentar em uma poltrona rústica feita com tampas de garrafas plásticas. E, embora o tenha feito “se abaixar” de seu estilo de vida luxuoso, ele não conseguiu sequer fazer uma careta.
Todos e cada um deles tinham algo a falar com Mujica, porque ele sabia em que fibra tocar para enriquecer o debate. Sua fama era tanta que ele até brincou de ser uma “estrela de cinema” com duas estreias no Festival de Cinema de Veneza de 2018: “El Pepe: Una Vida Suprema”, um documentário do diretor sérvio Emir Kusturica, e “La noche de 12 años”, do uruguaio Álvaro Brechner, um retrato de seus anos de prisão com Mauricio Rosencof e Eleuterio Fernández Huidobro. Provavelmente, não há outro líder mundial ainda vivo que tenha gerado tanta mítica em torno de si.
O desaparecimento físico de José “Pepe” Mujica entristece o Uruguai, mas também é uma grande perda para a América Latina como um todo. O continente fica desprovido de líderes carismáticos, enquanto pressiona os políticos a enfrentar um mundo de policrise. E à medida que surgem vozes que ameaçam a sobrevivência da democracia, o desafio é manter vivo o legado daqueles que aprenderam que a intolerância nunca será a solução. “Pepe” deixou muitas coisas inacabadas para as próximas gerações.
Tradução automática revisada por Isabel Lima