O que é diferente desta vez na Venezuela?
Em 28 de julho, aniversário de Hugo Chávez, os venezuelanos votaram em uma eleição presidencial. Desde 1999, a oposição não havia conseguido derrubar a “revolução bolivariana”. Dessa vez, no entanto, pesquisadores sérios estimaram uma ampla vitória para o candidato da oposição, Edmundo González Urrutia. A maioria das eleições na Venezuela não foram livres e justas por um longo tempo, mas, apesar de estarem cientes das condições injustas, a preferência dos venezuelanos por uma transformação pacífica do conflito motivou os cidadãos a votar. Desta vez foi diferente: o governo de Nicolás Maduro se envolveu no que parece ser uma fraude massiva sem precedentes, manipulando votos e se recusando a tornar públicas as apurações distribuídas por estado, município e seção eleitoral. Essa intensificação das irregularidades eleitorais impõe novos desafios à perspectiva de uma transição democrática que exige uma estratégia de resposta nacional e internacional adequada.
Uma história de repressão
Essa não foi a primeira vez que os cidadãos votaram em condições injustas. O abuso de recursos estatais em campanhas políticas tornou-se comum desde que o falecido presidente Hugo Chávez liderou a Revolução Bolivariana. A revolução de Chávez, batizada em homenagem ao herói da independência do país, Simón Bolívar, há muito tempo tem como objetivo estabelecer um estado socialista por meio da redistribuição da riqueza, da nacionalização dos principais setores, de programas sociais e da diminuição da influência estrangeira.
O cenário econômico desse movimento mudou consideravelmente nos últimos anos, à medida que Maduro empurrou a Venezuela para uma forma de capitalismo neopatrimonial e autoritário, mas sua vontade de permanecer no poder a todo custo só se intensificou. Por muito tempo, os oponentes foram enquadrados como fantoches dos Estados Unidos e atores de extrema direita. A manipulação do eleitorado e o legalismo autocrático também foram usados para desmobilizar as forças anti-Chávez.
Entretanto, os padrões de repressão mudaram durante os governos de Nicolás Maduro. Políticos de oposição, ativistas, defensores dos direitos humanos e jornalistas foram forçados ao exílio; os partidos foram destituídos de seu status legal e de seus símbolos partidários. Os dissidentes chavistas também foram submetidos à repressão. Esses são apenas alguns exemplos do arsenal de irregularidades.
Na última década, o governo redobrou essas táticas, buscando fragmentar a oposição e dificultar muito mais sua concorrência. Mas até então o governo relutava em alterar abertamente o resultado das eleições. Em 2013, por exemplo, a oposição denunciou fraude, mas não conseguiu apresentar provas de manipulação de votos. Alguns anos depois, em 2015, a oposição participou de eleições legislativas sob a coalizão conjunta MUD, obtendo uma vitória esmagadora.
Embora a elite governista tenha desmantelado a Assembleia Nacional e desencadeado uma repressão sem precedentes após as eleições, ela inicialmente reconheceu os resultados, e Maduro até mesmo compareceu à sessão inaugural. Mais tarde, em 2016, o governo usou os tribunais para rejeitar um referendo revogatório que o governo provavelmente teria perdido se tivesse sido realizado.
Um precedente direto de manipulação de votos foram as eleições regionais de 2017, em que o governo cometeu fraude ao alterar a contagem de votos nas seções eleitorais, conforme demonstrado pelo candidato da oposição a governador do estado de Bolívar, Andrés Velázquez. Desde que perdeu sua competitividade, o governo tem procurado constantemente empurrar a oposição para uma estratégia de boicote, o que reduziria os custos de reverter ou não reconhecer os resultados.
Esse foi o cenário em 2018, quando os atores tradicionais da oposição decidiram boicotar as eleições presidenciais em um momento em que Maduro tinha um baixo índice de popularidade devido à grave crise socioeconômica. Em 2021, a oposição voltou a adotar uma estratégia eleitoral para desafiar o presidente em exercício durante as eleições regionais. Quando a oposição venceu, o governo inicialmente reconheceu os resultados, mas depois ameaçou os prefeitos e governadores da oposição quando assumiram o cargo.
Embora o regime tenha utilizado diversos meios para combater a vontade do povo, nunca houve fraude flagrante em uma disputa nacional até esta eleição.
O que é diferente desta vez?
O chavismo entrou na disputa com a expectativa de que a oposição se fragmentaria antes das eleições. Apesar de todos os incentivos que o governo impôs para causar divisões, como a repressão seletiva de oponentes tradicionais e a margem de manobra para grupos cooptados, as elites da oposição, antes radicais, recorreram às eleições para derrotar o governo.
As elites no poder também fizeram campanha sabendo que teriam dificuldades para mobilizar a base chavista. Durante vários anos, os chavistas descontentes pressionaram e desafiaram a elite governista, exigindo que seus direitos e antigos benefícios fossem respeitados; eles também apontaram criticamente a corrupção e a riqueza desenfreada entre as elites governamentais.
Nesse contexto, o governo fez novas promessas e se baseou em velhas táticas de intimidação e vigilância para mobilizar seus apoiadores. O governo também se baseou em um discurso desgastado de ressentimento social, argumentando que a oposição era liderada pela velha oligarquia, cujos “sobrenomes” eram usados para governar o país. Muitos venezuelanos apontaram o caráter cínico dessa campanha liderada por um punhado de indivíduos que governaram por mais de duas décadas.
Mas a eleição também foi resultado de cuidadosas negociações internacionais, com o governo dos Estados Unidos fornecendo um alívio crucial das sanções em troca de condições eleitorais mínimas, ao mesmo tempo em que incentivava a oposição a voltar à via eleitoral. Em parte devido aos Acordos de Barbados, a Plataforma Unitária, uma aliança de partidos de oposição, organizou uma eleição primária, na qual María Corina Machado foi eleita como candidata unitária. O governo violou com frequência os termos do acordo, mas a oposição manteve o foco em derrotar Maduro nas urnas. Como Machado permaneceu impossibilitada de concorrer ao cargo, a aliança acabou optando pelo que deveria ser um substituto temporário, o ex-diplomata Edmundo González Urrutia, que concorreu contra o titular.
Alcance da fraude e profundidade da vitória
Essa é uma eleição nacional em que o cargo da presidência estava em jogo. O governo alegou que a invasão eletrônica estrangeira do sistema de transmissão atrasou a tabulação dos dados das seções eleitorais para a sede do Conselho Eleitoral. Ainda assim, com aparentes 80% dos votos contados, o conselho declarou Maduro vencedor com pouco mais de 51% dos votos. Não foi fornecido um detalhamento dos votos por estado, município e seção eleitoral, como é de praxe. Por outro lado, a oposição alega que suas testemunhas foram intimidadas e que muitas foram retiradas à força das seções eleitorais. Mesmo assim, os observadores eleitorais conseguiram coletar mais de 80% das apurações, mostrando uma margem de quase 70% a 30% em favor de Edmundo Gonzalez.
Embora não tenha sido totalmente verificada, a maioria das evidências até o momento indica que a contagem da oposição é o resultado correto. Se for verdade, essa será a primeira vez em 25 anos que a oposição não apenas vence uma eleição presidencial, mas o faz com uma vitória esmagadora. De acordo com esses resultados, o governo perdeu todos os estados e todos os municípios por uma ampla margem. Os resultados não revelam mais a divisão urbano-rural que era comum nos anos anteriores do chavismo. Tampouco mostram um viés da classe trabalhadora e do setor popular a favor do governo.
Em vez disso, vemos uma rejeição generalizada ao governo, o que explica em parte a consequência imediata do anúncio. Protestos espontâneos em massa e cacerolazos (uma forma tradicional de protesto em que as pessoas batem panelas e frigideiras) eclodiram em todo o país. Eles começaram em bairros da classe trabalhadora, e não nos bastiões tradicionais da oposição das classes média e alta.
Ao optar por participar das eleições nas piores condições desde 1999, os atores da oposição puderam capitalizar o descontentamento entre as classes pela primeira vez. Além disso, como os cidadãos participaram ativamente da organização e mobilização em torno das eleições, bem como no dia da eleição, eles se sentiram parte de um movimento pró-mudança e, portanto, pessoalmente enganados quando o governo anunciou os resultados. Participar e vencer por uma margem tão ampla impôs o dilema familiar de reconhecer e negociar ou participar de uma fraude massiva. Devido aos altos custos da saída, a elite governante escolheu a segunda opção.
O caminho a seguir
A Venezuela está entrando em uma nova e perigosa fase de seu conflito. O governo aumentou rapidamente a repressão contra os manifestantes e está implementando mecanismos de vigilância e intimidação contra a população. Ele está empregando diferentes táticas repressivas para fragmentar e desmobilizar a sociedade. Imagens e vídeos de comunidades de base revelam que grupos armados simpáticos ao regime estão intimidando os cidadãos e impondo toques de recolher. Nos setores de classe média e trabalhadora, o regime terá o apoio de uma forte presença policial e militar. As elites da oposição foram acusadas de serem fascistas e as elites do regime pediram a prisão de Machado e Gonzalez Urrutia. Essa escalada está aumentando os custos da participação e da dissidência aberta.
Embora isso seja verdade, ao optar por uma estratégia de resistência democrática pacífica e institucional, a oposição criou um impulso para um movimento pró-democracia diversificado e de várias classes. No nível da elite, os líderes da oposição devem permanecer resistentes diante das estratégias de fragmentação planejadas pelo governo.
Agora é o momento de abrir ainda mais a porta, pois os recentes anúncios de intelectuais, ex-ministros e líderes do chavismo e de outros candidatos às eleições presidenciais demonstram que uma ampla coalizão pela democracia pode ser forjada. Alguns desses líderes, que já foram críticos da oposição tradicional, mas que agora pedem a publicação dos resultados e a reversão da fraude, podem servir como pontes entre as facções governamentais que temem a repressão, mas que estão considerando a possibilidade de dissidência aberta, e o movimento pró-democracia.
Para que o desejo de mudança dos venezuelanos se concretize, a oposição deve permanecer comprometida entre si e com uma estratégia de base interna. Experiências passadas com movimentos paralelos e fora do sistema, como o “governo interino” liderado pelo ex-legislador Juan Guaidó, descarrilharam a oposição e desmobilizaram a sociedade.
Além de navegar pelos interesses das comunidades exiladas e de outros atores estrangeiros que podem ser tentados a se apressar para exercer o máximo de pressão sem considerar as novas restrições impostas após os resultados, os oponentes devem aproveitar a arte da diplomacia de alto nível. Vários governos, inclusive os dos Estados Unidos, membros da União Europeia e da América Latina, já pediram transparência e verificação imediata dos resultados eleitorais.
Organizações internacionais e grupos de direitos humanos também exigiram o fim da repressão contra os manifestantes. O papel dos governos historicamente tolerantes ao chavismo é crucial, como os do Brasil e da Colômbia. Eles devem permanecer vigilantes, continuar exigindo a divulgação dos resultados e trabalhar em coordenação com outros governos latino-americanos, bem como com os Estados Unidos, para oferecer uma via diplomática para uma solução negociada para essa crise.
As elites da oposição devem proteger o impulso que ajudaram a construir com os movimentos de base, a sociedade civil organizada e os cidadãos comuns. Ambos os líderes se dirigiram pessoalmente aos cidadãos três vezes: duas vezes após o anúncio dos resultados em 29 de julho e novamente em 30 de julho.Eles também publicaram mensagens em suas plataformas de rede social.
Embora seja compreensível que, em meio a uma onda de repressão, a liderança seja cautelosa, é essencial organizar e canalizar o descontentamento de forma consistente. Isso começa com a elaboração de mensagens que levem em conta as necessidades e realidades de diferentes grupos dentro do campo pró-mudança, inclusive aqueles que estão sendo mais duramente reprimidos pelo governo. A causa comum desse bloco heterogêneo é a verificação e o respeito aos resultados das eleições. A preferência da sociedade por uma solução pacífica para o conflito deve ser respeitada pela oposição. Qualquer ato de violência deve continuar sendo rejeitado, como Machado e González Urrutia têm sustentado até agora.
A oposição também deve encontrar maneiras de apoiar as comunidades atingidas pela repressão. As vítimas da violência precisarão de recursos materiais e não materiais para lidar com as trágicas consequências de seu desejo de mudança.
Nas eleições de 28 de julho, o governo entrou em um novo nível de irregularidades eleitorais, afastando-se de qualquer pretensão de responsabilidade democrática. Essa quebra de confiança no povo venezuelano marca o início de novos desafios para uma transição na Venezuela. Embora o governante autoritário tenha levado a melhor até o momento, a sociedade venezuelana e a oposição podem trabalhar com atores internacionais para exigir a verificação transparente dos resultados das eleições e a abertura democrática.
Os venezuelanos já atenderam às expectativas dos atores internacionais ao participarem, apesar de todos os riscos e custos. Permitir que o governo saia impune de uma fraude não só aumentaria os riscos de dissidência e de mais deslocamentos, mas também incentivaria outros autocratas a seguir o exemplo em outros lugares.
Este artigo reflete unicamente as opiniões dos autores.
*Texto publicado originalmente em Verfassungsblog
Autor
Doutora em Ciência Política pela Universidade de Oxford. Pesquisadora de pos-doutorado na Oxford School of Global and Area Studies. Estuda processos de democratização e autoritarismo na América Latina.
Professor de Ciências Sociais da Universidade de York (Toronto, Canadá). Doutor em Governo Global pela Universidade de Waterloo (Canadá). Suas investigações se concentram em temas de economia política, extração de recursos naturais, energia e democracia.