Coautora Ana Paula Dalcin
A bacia do rio Paraná, a segunda maior do Brasil e a principal em geração de energia hidrelétrica, conta com mais de 60 hidrelétricas que abrigam 33% da capacidade de produção de eletricidade de todo o país e respondem por metade da capacidade de armazenamento de água. Mas a operação dos reservatórios, necessários para controlar a geração de energia hidrelétrica, afeta as funções de reprodução, alimentação e refúgio de diferentes espécies aquáticas. Esta perda de diversidade tem sido prejudicial há anos, não só aos pescadores que veem seu sustento reduzido, mas a bacia como um todo, já que o impacto na biodiversidade afeta o ecossistema aquático do rio Paraná.
A bacia do rio Paraná apresenta condições de vulnerabilidade para garantir a segurança hídrica, energética e alimentar, algo que ficou em evidência pela seca que tem afetado a bacia nos últimos anos. À medida que nossa demanda por água, energia e alimentos aumenta, a água torna-se mais escassa, e satisfazer às necessidades da sociedade sem comprometer a qualidade do meio ambiente para as gerações futuras torna-se mais difícil.
Enfrentar este desafio depende não apenas do uso mais eficiente da água, mas sobretudo de como compartilhamos este recurso com as distintas demandas existentes, entre elas o próprio meio ambiente. A água dos rios, lagos e reservatórios também é necessária para manter vivos os ecossistemas que proporcionam recursos valiosos para a sociedade. Desde alimentos como peixe, até atividades recreativas e, inclusive, a limpeza da própria água, realizada pelos organismos que nela vivem.
Por outro lado, para as comunidades que vivem perto dos rios, a importância desses recursos vai muito além, já que o rio é uma fonte de sustento e identidade cultural que é transmitida de geração em geração.
Grande parte do nosso processo de desenvolvimento faz uso de recursos naturais com um conhecimento ainda limitado de como os ecossistemas são afetados. Em várias regiões da América Latina e do mundo, este processo vem acumulando impactos que já comprometem o meio ambiente. A água se contamina, as populações de peixes diminuem e a capacidade do meio ambiente como um todo de sustentar a vida é posta em risco.
Neste contexto, as comunidades pesqueiras da bacia do rio Paraná vêm relatando há anos a redução da quantidade de peixes e seus impactos na subsistência das famílias que vivem desta atividade. Os pescadores informam que muitas vezes é necessário buscar o peixe em zonas mais longínquas para complementar sua renda, o que também acaba aumentando os custos de combustível e o esgotamento físico dos pescadores.
Condições como estas fazem com que muitas famílias abandonem a pesca e busquem o sustento em outras atividades. Dos quase 1.200 membros reportados pela associação de pescadores na cidade de Porto Rico, Paraná, em 2010, esse número caiu para apenas 384 membros em 2019.
A missão mais importante da gestão dos recursos hídricos
Cabe aos organismos que gerenciam a água, aos órgãos de planejamento e comitês de bacias engajar a sociedade para debater, negociar e buscar um consenso que identifique soluções para alcançar os objetivos comuns. O resultado deste trabalho participativo é a base sobre a qual devem ser criadas políticas públicas eficazes.
Neste sentido, o projeto de pesquisa transdisciplinar, Improving the governance of the floodplain in over-built river basins, coordenado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Instituto de Pesquisas Hidráulicas no Brasil, identificou uma extensa cadeia de relações causais entre os recursos hídricos da bacia do Paraná e os múltiplos usos energéticos, ecossistêmicos, pesqueiros e recreativos, e criou métodos e soluções que ajudarão a construir caminhos de adaptação, conciliando os diferentes usos da água e do meio ambiente em benefício da sociedade.
Esses usos da água impactam positivamente a sociedade: desde as comunidades locais que dependem da pesca para sua subsistência, até os milhões de pessoas no Brasil e no Paraguai que são atendidos por eletricidade de uma fonte renovável (hidrelétrica) graças a um sistema interconectado à escala nacional.
Os resultados do estudo mostram que em sistemas complexos como o Paraná não há uma solução única, mas um universo de possibilidades e resultados diferentes. É possível combinar diferentes padrões de fluxo liberados pelos reservatórios e atender as demandas dos peixes, reduzindo o impacto sobre eles.
Como cada combinação também reflete na quantidade de energia produzida pelos reservatórios, é possível explorar este resultado para encontrar soluções alternativas de alocação de água que satisfaçam tanto a demanda local de pesca, turismo e recreação, como as necessidades de proteção da biodiversidade na bacia do Paraná, e as necessidades nacionais de energia renovável e acessível.
Ademais, ao dispor de um maior número de soluções alternativas, o processo de negociação torna-se menos conflitivo, o que aumenta as possibilidades de alcançar soluções eficazes para a recuperação ambiental da bacia sem um custo energético muito elevado.
As soluções para estes problemas são urgentes e requerem estratégias de longo prazo para que a bacia se adapte. De fato, segundo o mesmo estudo, os cenários de mudança climática indicam uma redução média nos fluxos de entre 7 e 40%, o que reduziria não apenas a geração de energia, mas também se traduziria em menos água disponível para as demandas dos peixes.
A seca de 2020-2021 na bacia do Paraná corroborou esta preocupação, na medida em que os fluxos liberados de alguns reservatórios foram reduzidos para preservar o armazenamento e manter a geração hidrelétrica em um período de baixos estoques de energia no país. Para melhor enfrentar eventos futuros dessa natureza, podem ser avaliadas estratégias de funcionamento do sistema que melhorem o atendimento a algumas das demandas do peixes, permitindo que as populações dos mesmos se recuperem a longo prazo, tornando o ecossistema mais resistente para suportar o impacto da próxima seca, quando o funcionamento dos reservatórios for modificado para manter a segurança energética do país (essa é a principal prioridade). Os estudos desenvolvidos neste projeto trazem soluções que contribuem não apenas para essa avaliação, mas também para apoiar políticas energéticas que explorem outras fontes de geração e armazenamento de energia, reduzindo a pressão sobre as bacias hidrográficas.
Em conclusão, os reservatórios são infraestruturas chave para nossa adaptação às mudanças provocadas pelo clima e pelo ser humano. Embora sua construção e funcionamento tenham impactos ambientais, muitos dos quais ainda temos que mitigar, os mesmos proporcionam uma importante capacidade de armazenamento de água que será fundamental para nos ajudar a proteger os ecossistemas dos efeitos das mudanças climáticas que tornam a água mais escassa, incerta e variável.
É possível otimizar o funcionamento dos reservatórios para reduzir os riscos à produção de energia e criar oportunidades para manter os fluxos requeridos pelos peixes durante os meses importantes de sua reprodução.
Entretanto, isso requer coordenar as políticas de água, meio ambiente, energia e sociais, já que necessitamos da água para manter a vida nos rios, gerar eletricidade, fornecer alimentos às cidades e comunidades locais, assim como também precisamos de energia para produzir alimentos e ampliar as oportunidades de desenvolvimento das regiões econômica e socialmente vulneráveis.
Essa forte conexão entre os diferentes fatores deixa claro que uma política só terá sucesso em uma destes âmbitos se integrada para ter sucesso também nas outras.
Ana Paula Dalcin é doutoranda do Programa de Pós Graduação em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental IPH/UFRGS.
Autor
Professor associado do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor em Engenharia de Recursos Hídricos pela Universidade da California, Davis.