O 11 de setembro é o dia mais sagrado para alguns setores da esquerda chilena, uma data que transcende o político para adquirir uma dimensão quase religiosa. A comemoração do golpe de Estado de 1973 mostra que, mais do que uma simples memória histórica, essa data representa uma verdadeira liturgia na qual se presta homenagem aos mártires e santos de uma narrativa que consolidou uma visão muito dolorosa da história recente do Chile.
Como em qualquer religião, a liturgia de 11 de setembro tem seus símbolos sagrados. As vítimas das atrocidades da ditadura ocupam um lugar comparável ao dos santos no cristianismo: figuras que encarnam a pureza do sacrifício e a luta por uma causa justa. Os desaparecidos, em particular, têm um lugar de reverência especial, pois a impossibilidade de encerrar o luto mantém viva a dolorosa ferida aberta de sua ausência. E Salvador Allende é o mártir por excelência, cuja figura foi santificada, um ícone indiscutível do sacrifício pessoal em defesa de um ideal de construção de um país melhor. Como nas cerimônias religiosas, o sofrimento compartilhado une os fieis, que se reúnem cada ano para lembrar os mortos e manter sua memória presente.
Sacerdócio sem Deus ou pecado
Embora essa liturgia não tenha Deus em seu centro, tem líderes que oficiam como sacerdotes. Os oradores, figuras emblemáticas da esquerda, guiam a comunidade com fervorosa convicção em uma espécie de recital em que as palavras de esperança e luta se elevam como orações. A vitória do “povo unido”, que “jamais será vencido”, tantas vezes entoada, se apresenta como uma terra prometida: sempre visível, mas inatingível, como o horizonte. Ou o paraíso cristão, cuja promessa constante mantém viva a esperança.
Diferente das religiões tradicionais, essa liturgia carece de um elemento essencial: a culpa. As religiões monoteístas, como cristianismo, judaísmo e islamismo, também comemoram desastres trágicos e sofrimentos, mas nelas o reconhecimento do próprio pecado é fundamental para a redenção. Na liturgia do 11 de setembro, entretanto, os pecados pertencem exclusivamente ao inimigo: o fascismo, o imperialismo, a direita política e os opressores militares. Embora a autocrítica tenha surgido em outros contextos políticos, na liturgia do 11 de setembro geralmente não há reflexão sobre os erros internos que também podem ter contribuído para a tragédia de 1973.
Esse vazio na narrativa talvez seja a mais inquietante. A dor compartilhada une a comunidade, mas a falta de reflexão sobre a responsabilidade coletiva limita as possibilidades de superar o trauma. Como alguém que cresceu nesse entorno, me pergunto se essa omissão não nos impede – inclusive quem compartilha muitos desses ideais – de fazer uma análise honesta do nosso papel na história, reconhecendo que os erros não foram cometidos só pelos outros, mas também por nós mesmos. Sem essa reflexão, seguimos presos em um ciclo de dor e acusação mútua, incapazes de avançar para uma verdadeira reconciliação nacional, cura emocional ou amadurecimento ético.
Uma liturgia em evolução
A liturgia do 11 de setembro é mais do que uma simples comemoração política: é um culto que segue vivo, evoluindo com o tempo, mas ancorado nos mesmos pilares de dor, resistência e luta. Embora tenha unido gerações em torno de uma causa comum, inclusive com ajuda mútua nos duros desafios do exílio, a falta de autocrítica pode transformá-la em um culto estagnado.
Comparar o 11 de setembro de 1973 com o plebiscito de 4 de setembro de 2022 é revelador em termos de como ambas as derrotas foram processadas e lembradas. Ambas as datas representam duros fracassos para a esquerda chilena, mas a diferença essencial está na responsabilidade. A narrativa do golpe de Estado de 1973 permite à esquerda evitar uma autocrítica profunda dos erros de gestão, radicalização e divisões internas do governo Allende. O inimigo externo atua como um escudo que desvia a atenção de qualquer responsabilidade interna, consolidando a ideia de uma luta justa esmagada por um poder antidemocrático, uma narrativa que o culto ao 11 de setembro mantém viva.
Em contraste, a derrota no plebiscito de 2022 não oferece um inimigo externo claro sobre o qual descarregar a responsabilidade. Foi uma decisão democrática tomada pelo povo chileno, que claramente rejeitou uma proposta de Constituição elaborada principalmente por setores progressistas e de esquerda. Boa parte da responsabilidade recai sobre as próprias decisões políticas e sobre a desconexão entre a proposta e as expectativas da maioria dos eleitores. Desperdiçou-se uma oportunidade histórica de avançar para um país mais justo, deixando intacta a constituição neoliberal imposta durante a ditadura.
O peso do erro na memória coletiva
Embora o 11 de setembro continue sendo uma data carregada de simbolismo por sua conexão com a dor e a violência do golpe, o plebiscito de 4 de setembro de 2022 é uma ferida mais recente. Por hora, é uma data ignorada pela esquerda chilena, cujo significado histórico ainda está se revelando. Sua relevância dependerá da disposição de reconhecer que foi uma derrota causada em grande parte, embora certamente não inteiramente, por erros próprios, e não pela imposição de uma força externa sobre a vontade do “povo”. Pelo contrário, foi o povo que se expressou através de um plebiscito democrático. A autocrítica é indispensável para que esse evento não seja só uma derrota política passageira, mas um momento de aprendizado e renovação.
No final das contas, a questão é se o culto ao 11 de setembro pode evoluir para uma autêntica reflexão nacional ou se continuará como um ritual que repete, ano após ano, uma narrativa imutável em que a culpa sempre recai sobre o outro. O erro do plebiscito de 2022 torna essa derrota mais difícil, mas também é uma oportunidade de aprender uma lição valiosa, se estivermos dispostos a encará-la com maturidade, robustez e honestidade. Aceitar que o povo nunca esteve unido, como demonstrou o plebiscito de 2022, é um passo difícil, mas necessário, para a redenção política e moral. Às vezes, as pessoas podem aprender a viver juntas mesmo com suas diferenças, e não apesar delas. Elas fazem isso sem demonização, assumindo que seus próprios erros e deficiências as tornam mais, e não menos, humanas.
Autor
Professor Associado de Ciência Política na Universidade de Calgary (Canadá). Doutor em Ciência Política pelo Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT). Especializado em política comparada.