Ocorreu, entre 12 e 15 de março, a audiência pública na Corte Interamericana de Direitos Humanos para receber argumentos orais sobre o direito ao cuidado. A solicitação, que havia sido feita pelo antigo governo argentino em janeiro de 2023, recebeu 49 observações de organizações da sociedade civil, 34 de instituições acadêmicas e outras 24 de indivíduos, o que demonstra o interesse por um padrão legal na matéria.
Os cuidados referem-se às necessidades materiais e imateriais, públicas e privadas, físicas e emocionais inerentes à reprodução da vida. É necessário levar em conta o caráter autônomo do direito ao cuidado como componente essencial do bem-estar e como pilar fundamental para uma vida digna e do desenvolvimento durante todo o ciclo vital das pessoas. Nesse sentido, as dimensões desse direito são entendidas a partir da recepção de cuidados, bem como da provisão de cuidados e do autocuidado.
A partir dos debates e das posturas conceituais de especialistas na área, os cuidados podem ser resumidos como as atividades que ocorrem no âmbito doméstico (embora não exclusivamente) de atenção e proteção que realizamos para manter, reparar e perpetuar nosso mundo a partir do bem-estar das vidas e do entorno. Hoje, devido à naturalização da divisão sexual do trabalho, essa atividade é realizada principalmente por mulheres, meninas e corpos feminizados.
Embora não exista um instrumento legal específico que harmonize os padrões e as dimensões do direito ao cuidado, identificou-se que várias dimensões desse direito estão contidas em vários instrumentos do direito internacional. Abordar essa situação é fundamental, pois a dispersão do direito ao cuidado pode se traduzir em indefensabilidade, como a atual, notória e histórica falta de cumprimento das obrigações estatais.
Nesse marco, a Plataforma Regional de Oxfam na América Latina e no Caribe colocou na mesa da audiência a necessidade de democratizar o debate sobre tributação para uma tributação global inclusiva, sustentável e feminista que incida no direito ao cuidado. A proposta busca visibilizar o princípio relativo ao máximo de recursos disponíveis, incluído no artigo 26 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a partir de uma interpretação progressista e interseccional.
Em sua argumentação, Oxfam ratificou a necessidade de implementar um enfoque interseccional que permita entender as múltiplas dimensões que constituem a desigualdade, que têm implicações diferenciadas com interseções complexas baseadas em sexo, raça, classe social, orientação sexual e identidade de gênero, idade, etnia, condição migratória, localização geográfica, orientação política, entre muitas outras.
A própria Corte o identifica dessa forma no Caso Gonzáles Lluy e outros v. Equador, onde destaca a interseção de múltiplos fatores que determinam uma situação de discriminação única, que não teria existido como tal se algum deles estivesse ausente, e aprofunda essa postura nos casos Rosendo Cantú e outra v. México; Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde v. Brasil e Vicky Hernández e outras v. Honduras.
Nesse sentido, a Corte não ignora que, como aponta a Oxfam no relatório A Lei do mais Rico, “América Latina e Caribe se tornou uma região mais desigual, empobrecida e muito mais polarizada social e politicamente”, e que as múltiplas crises (como a ocasionada pela covid-19, mas também a climática, a alimentar e a migratória) afetam as pessoas de maneira diferenciada.
O relatório aponta que, de março de 2020 até o final de 2022, a desigualdade, a pobreza e as brechas sociais aumentaram consideravelmente na América Latina e no Caribe. Frente aos 21% de crescimento na riqueza dos bilionários, os salários reais da maioria da população perderam um décimo de seu valor; e 32% da população total vive em situação de pobreza, dos quais 13% estão na pobreza extrema. Até o final de 2022, a insegurança alimentar afetou quatro em cada dez pessoas na região.
Por esse motivo, a própria Corte analisou tanto o contexto social quanto as medidas a serem tomadas para garantir efetivamente os direitos. Isso se reflete no Caso Cuscul Pivaral e outros v. Guatemala, no qual se reconhece que, apesar dos desafios metodológicos e normativos, “a Corte não pode ficar à margem diante do grave problema de desigualdade, iniquidade e exclusão social que prevalece na região e da falta de proteção em termos de desca, sobretudo para os grupos mais vulneráveis”. Portanto, as dimensões de aplicabilidade imediata e progressividade devem ser abordadas.
Como consequência indireta desse modelo econômico baseado no extrativismo, segundo o estudo A sociedade do cuidado de CEPAL e Nações Unidas, o investimento se deteriora “devido aos altos níveis de incerteza […] e implica mudanças drásticas nas receitas fiscais”. Isso limita o investimento público e as iniciativas de políticas voltadas à igualdade, como as políticas de cuidado. Ademais, quando o enfoque de gênero não é levado em conta nas políticas macroeconômicas, são as mulheres que acabam amortecendo o impacto das crises mediante o trabalho doméstico e de cuidados não remunerados.
Por fim, a ênfase dessa contribuição se concentrou no relatório sobre justiça tributária e, especificamente, no princípio de máximos recursos disponíveis como objetivo para garantir direitos. O relatório aposta em sistemas tributários orientados pelos princípios de progressividade, transparência e equidade, e com um financiamento público em que a vida esteja no centro das decisões públicas.
Autor
Professora de gênero e relações internacionais na Universidade Iberoamericana, Cidade do México. Mestre em Gestão do Desenvolvimento pela Ruhr University na Alemanha. Diretora da Coordenação Intergovernamental e Interinstitucional do Conselho Nacional de População (CONAPO).
Consultora técnica sobre justiça de género e direitos das mulheres, Oxfam.