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Motosserra na democracia: Milei e a Corte Suprema Argentina

Javier Milei tem governado por decretos polêmicos e, em meio ao "Criptogate", busca consolidar seu poder no judiciário, levantando preocupações sobre a erosão democrática na Argentina.

Javier Milei, presidente da Argentina, ganhou notoriedade pela imagem da motosserra. Num primeiro momento, sua intenção era “cortar” o Estado argentino, seu inimigo. No entanto, a motosserra está sendo utilizada contra a democracia. Em 25 de fevereiro, foram nomeados por decreto dois ministros para a Corte Suprema, Ariel Lijo e Manuel García-Mansilla, levantando questões sobre a legitimidade e a independência da Justiça no país.

O processo de escolha dos juízes da Corte Suprema, estabelecido pela Constituição Nacional, envolve a apresentação de candidatos pelo Poder Executivo, seguida da aprovação pelo Senado, com um quórum de dois terços. Esse procedimento inclui uma fase de impugnações e observações públicas, conforme o Decreto 222/03, que visou aumentar a transparência e a participação cidadã. A Corte, que deveria ter cinco magistrados, conta atualmente com apenas três, devido à aposentadoria e renúncia.

A recente escolha de Milei para a nomeação de Lijo e García-Mansilla, via Decreto 137/2025, ignora esse processo legislativo, comprometendo a divisão de poderes e a independência da Corte. As nomeações por decreto são temporárias, precárias, feitas durante o recesso do Congresso, e visam contornar a falta de apoio político do presidente, que não possui os votos necessários para aprovar suas indicações. O partido de oposição, União pela Pátria, possui maioria no Senado, podendo obstruir tais nomeações.

Além de prejudicar a credibilidade da Corte, essa ação de Milei é vista como uma violação da independência judicial e um retrocesso em relação à igualdade de gênero, uma vez que as nomeações foram apenas de homens, desconsiderando a histórica sub-representação feminina no tribunal. Apenas três mulheres, de um total de 104 homens, ocuparam a vaga na Corte Suprema ao longo de sua trajetória. Argentina é o único país da Iberoamérica sem representação feminina na Corte.

A crítica se intensifica com a afirmação de que as nomeações são inconstitucionais e poderiam resultar em nulidade das sentenças que os novos ministros venham a assinar. Mais de 30 organizações da sociedade civil expressaram sua preocupação com a erosão da legitimidade e da qualidade institucional do Poder Judiciário, enfatizando que a construção de consensos e o respeito à divisão de poderes são fundamentais para a democracia. A situação atual, marcada por uma massiva desconfiança popular em relação ao Judiciário, destaca a urgência de um retorno à legalidade no processo de nomeações judiciais.

O ex-ministro da Corte Suprema, Eugenio Zaffaroni, classificou as recentes designações como inconstitucionais, prevendo sérios problemas jurídicos caso esses ministros venham a assinar sentenças, as quais seriam nulas e configurariam usurpação de funções. O também aposentado ministro Juan Carlos Maqueda expressou sua indignação, afirmando que a decisão do presidente, a três dias do início das sessões ordinárias, é “absolutamente lamentável”. Maqueda ressaltou que o contexto histórico que permitiu nomeações por decreto em 1860, em uma Argentina quase deserta, é radicalmente distinto do atual.

A situação é ainda mais complicada pelo fato de que o novo ministro, Garcia-Mansilla, já havia manifestado anteriormente sua oposição a indicações feitas por decreto. Apesar de existirem vozes críticas, muitos apoiadores optam pelo silêncio, temerosos de se associar a uma manobra presidencial controversa, especialmente em relação à nomeação de Ariel Lijo, que é amplamente contestada. Observadores alertam que essa estratégia permite ao presidente Milei aguardar os resultados das eleições legislativas de 2025, buscando fortalecer sua base no Senado para reintroduzir as designações ao Senado. O atual presidente da Corte, Horacio Rosatti, indicou que a própria Corte avaliará a constitucionalidade do decreto, e já há ações judiciais contra ele.

O velho conhecido

Ariel Lijo, o indicado, é um juiz federal de destaque, conhecido por sua atuação em casos de corrupção. Ele possui um histórico controverso, com 34 denúncias disciplinares registradas, embora nenhuma tenha resultado em condenação. Lijo, associado a figuras políticas influentes, defendeu sua candidatura em uma audiência de 8 horas no Senado em 2024, onde enfrentou um número considerável de contestações. Sua nomeação, no entanto, foi amplamente criticada, inclusive por aliados de Milei, como a própria vice presidenta da Nação Victoria Villarruel.

A Câmara de Comércio dos Estados Unidos na Argentina e o Colégio de Advogados da Cidade de Buenos Aires expressaram preocupações sobre as implicações econômicas da nomeação de Lijo, que já foi questionado por sua conduta inadequada. Juristas e constitucionalistas também se posicionaram contra as designações, caracterizando-as como irregulares e potencialmente instáveis para a institucionalidade do país.

Neste momento, a situação de Lijo permanece incerta. Ao ser sua designação temporária, Lijo deve renunciar a seu cargo de juiz federal, como foi decidido pela própria corte suprema na primeira semana de março. Ele ainda não renunciou, e se comenta que prefere ser aprovado pelo trâmite ordinário, com aprovação do Senado.

O desconhecido

A recente nomeação de Manuel José García-Mansilla para substituir o juiz Juan Carlos Maqueda, que completou 75 anos em dezembro de 2024, também levantou questões sobre a legitimidade do processo. Em março de 2024, o presidente Milei o indicou para a Corte Suprema, mas García-Mansilla não obteve as nove assinaturas necessárias da comissão do Senado para prosseguir com a votação no plenário. Ignorando essa exigência, Milei nomeou-o em comissão por meio do decreto N° 137/2025, em 25 de fevereiro de 2025. A Corte Suprema, ao considerar que o indicado possuía as qualificações exigidas pela Constituição, empossou-o em uma cerimônia fechada dois dias depois. Um conjunto de organizações entrou na justiça pedindo sua nulidade.

García-Mansilla possui uma carreira acadêmica, sendo doutor em Direito, decano da Faculdade de Direito da Universidade Austral e professor de Direito Constitucional. No âmbito privado representou ao setor energético. Ele é descrito como um ultraconservador em questões sociais e liberal em termos econômicos, alinhando-se com a ideologia do atual governo. Sua postura crítica em relação aos tratados de direitos humanos e sua militância contra a interrupção voluntária da gravidez exemplificam suas posições.

Historicamente, a tentativa de Mauricio Macri de nomear magistrados por decreto em 2015, encontrou forte oposição, levando-o a reverter a decisão. Em contraste, Javier Milei tem governado por decretos polêmicos e, em meio ao “Criptogate”, busca consolidar seu poder no judiciário, levantando preocupações sobre a erosão democrática na Argentina.

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Cientista Político. Professor de Ciências Políticas da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor em Ciência Política pelos Institutos de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ).

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