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Narcotráfico na Bolívia: dúvidas e dívidas pendentes

O narcotráfico na Bolívia está interligado a uma multiplicidade de fatores, desde a dinâmica econômica transnacional até as lutas pelo poder. É predominante na política atual e um fenômeno com a capacidade de prejudicar o tecido social e a democracia.

Apreensões históricas, incursões bem-sucedidas, apreensões diárias. O governo boliviano é eloquente em seu discurso e dados sobre a luta contra as drogas. Mas a reconfiguração do narcotráfico e o avanço transnacional superam o otimismo retórico e os registros.

Como o terceiro maior país produtor de coca do mundo, atrás da Colômbia e do Peru, a Bolívia tem estado sob constante escrutínio internacional e, no último ano, também tem enfrentado uma disputa interna dentro do partido governista que está tomando como bandeira o narcotráfico. Os ataques do ex-presidente Evo Morales ao seu sucessor Luis Arce não são apenas comentários sobre uma governança deficiente; são acusações diretas sobre o suposto protecionismo aos narcotraficantes que operam no país.

Expansão do crime organizado

De acordo com dados oficiais, as apreensões de cocaína em 2023 aumentaram 62% em relação a 2022, o que pode sugerir eficiência nos controles, mas também o fortalecimento da produção, da corrupção e da violência. Embora a taxa de homicídios na Bolívia seja menor do que em outros países latino-americanos, há alguns fatos concretos que geraram preocupação e mais debates sobre a política de drogas no país.

As extorsões e os sequestros vinculados aos crimes de narcotráfico são mais frequentes e violentos, bem como a presença de integrantes de organizações criminosas de alta periculosidade, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), conforme confirmado pelas autoridades policiais.

Soma-se a isso um dos eventos mais polêmicos de 2023 com o narcotraficante uruguaio Sebastian Marset, que viveu por quase um ano na Bolívia operando livremente e depois fugiu do país após uma mal-sucedida operação policial. Em um caso mais recente, em fevereiro deste ano, a captura do brasileiro Máximo da Fonseca, que há 10 anos traficava drogas para o Peru, Paraguai e Brasil. O governo o descreveu como uma “baleia do narcotráfico”.

A realidade é que a Bolívia se tornou não apenas um país de trânsito, mas também um produtor e exportador de drogas. Sua localização estratégica, a vulnerabilidade de seu espaço aéreo, os deficientes controles terrestres e a demanda dos mercados europeus e, agora, asiáticos, fazem dela um corredor atraente e até mesmo obrigatório na região. As drogas transitam pelo Peru e pela Bolívia por meio de pistas de pouso clandestinas e depois saem do Brasil e do Paraguai para outros mercados

Após a desaceleração devido à pandemia de Covid-19, a produção mundial de cocaína deve aumentar 35% entre 2020 e 2021, um recorde e o maior aumento anual desde 2016, de acordo com o Relatório Mundial da Cocaína 2023, publicado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).

Hoje, o narcotráfico é sustentado por traficantes habilidosos que conhecem os métodos antigos e o poder dos vínculos políticos para reforçar o controle territorial e as cadeias de suprimentos. É inegável que esse negócio lucrativo se modernizou com uma estrutura transnacional mais efetiva em termos de rotas e tecnologia, e também porque há grupos de pequenos e médios portes com capacidade de se movimentar sem precisar pertencer aos grandes cartéis. Enquanto a ilegalidade avança em um ritmo acelerado, a estrutura institucional, que foi manchada pela corrupção, está sendo questionada.

No Relatório de Riscos Políticos da América Latina 2024, a classificação dos principais riscos para este ano é liderada pela insegurança, pelo crime organizado e pelo narcotráfico. Na Bolívia, a falta de institucionalidade, a independência dos poderes e a impunidade se tornaram evidentes. Prova disso é que pelo menos trinta policiais estiveram envolvidos em casos de narcotráfico entre 2022 e 2023, muitos deles com processos penais que não resultam em sanções e até mesmo possibilitam seu retorno às fileiras da instituição. Mesmo diante desses fatos, o discurso negacionista do governo continua: o narcotráfico não penetrou no Estado.

Uma luta conjunta?

O uso tradicional e medicinal da folha de coca está previsto na Constituição boliviana desde 2009 e a área legal de cultivo é atualmente de 22.000 hectares. Mas o debate sempre foi aberto com relação à quantidade de produção que é desviada para o narcotráfico.

Os números validados pelo governo são aqueles que utilizam sua própria metodologia e contradizem os apresentados pelo UNODC, que mostra um aumento de 4%, de 29.400 hectares em 2020 para 30.500 hectares em 2021.

A luta antidrogas na Bolívia foi empreendida sob o conceito de soberania e não-intervencionismo nos 18 anos do Movimento ao Socialismo (MAS) e com o slogan de que foi exitosa. Em 2008, o então presidente Evo Morales expulsou a Drug Enforcement Administration (DEA), acusando-a de financiar um “golpe de Estado fracassado”, e a possibilidade de tal acompanhamento nunca mais foi considerada.

No entanto, a reconfiguração do narcotráfico significa que a luta contra as drogas deve ter um caráter mais integracionista e transnacional, ou seja, com acordos multidisciplinares e ações coordenadas entre os países. Embora o governo boliviano tenha demonstrado abertura para a cooperação, é um tanto contraditório quando ainda prevalece a negação da capacidade de produção e exportação de drogas do país, bem como a rejeição de perguntas de organizações internacionais que pedem maiores esforços na estratégia antidrogas.

Isso levanta questões sobre o real comprometimento da Bolívia: a prioridade do governo é a luta contra as drogas? O país tem a capacidade de enfrentar o crime organizado? É confiável perante a comunidade internacional?

Narcotráfico e poder

As disputas internas cada vez mais radicais dentro do MAS, dividido em duas facções, a do presidente Luis Arce e a de seu antecessor Evo Morales, buscam deslegitimar as ações antidrogas realizadas em cada gestão, em um jogo de poder que tem em vista as eleições gerais de 2025.

As partes estão bem cientes dos pontos fracos, mas também sabem como se esquivar ou minimizar as acusações e, no final, é o próprio governo em uma atmosfera que obscurece o que poderia ser uma verdadeira política antidrogas.  Em meio ao confronto, o país continua cada vez mais mergulhado na violência e na expansão do narcotráfico. Como um Estado, com uma democracia debilitada, pode lidar com esse flagelo?

Autor

Jornalista. Possui pós-graduação em jornalismo digital, direitos humanos e comunicação política. Correspondente da Voz da América e editora da Connectas.

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