Parir, mulheres para parir…Queremos mais bebês… Que seja moda ter muitos descendentes…. Somos a favor da família para que a Pátria cresça… Precisamos de famílias maiores… são expressões que refletem um tipo de culto à fertilidade pronunciado recentemente em discursos de chefes de Estado.
O culto à fertilidade, um fenômeno presente em diversas culturas ao longo da história, concentrava-se na veneração da fertilidade como um princípio vital através de rituais e práticas que celebravam a abundância da terra, dos animais e seres humanos. Esse enfoque parece ter raízes na necessidade de garantir a sobrevivência das comunidades, onde o aumento da população se associa à prosperidade e continuidade cultural.
É possível falar hoje de um culto moderno à fertilidade? Vários fatores se conjugam para configurar o renascimento de uma cultura a favor da natalidade que, embora possa oferecer certos benefícios quando associada ao apoio econômico às famílias, também levanta sérias preocupações sobre a autonomia reprodutiva das mulheres e seu direito de decidir sobre seus corpos.
As razões por trás do culto
Em muitas sociedades contemporâneas, a fertilidade e a maternidade são frequentemente idealizadas na cultura popular, publicidade e nas redes sociais. Em muitas mensagens e imagens observa-se uma glorificação da figura materna, que mostram experiências idealizadas de maternidade, gerando pressão social para que as mulheres se tornem mães e cumpram os padrões heteropatriarcais de reprodução como missão vital.
Além disso, alguns líderes políticos adotaram um enfoque explícito centrado na mensagem que pressionam as mulheres a parir como imperativo social e cultural. Esse fenômeno ressurgiu no contexto contemporâneo através de políticas promovidas por políticos como Marine Le Pen na França, Viktor Orbán na Hungria, Xi Jinping na China, Nicolás Maduro na Venezuela, Donald Trump nos EUA e Putin na Rússia, entre outros. A maneira em que essas políticas são apresentadas é influenciada por narrativas que favorecem certos grupos ou ideologias, sem considerar os direitos e desejos individuais das mulheres.
As explicações que sustentam o renascimento dessas políticas são variadas. Em primeiro lugar, as preocupações com o envelhecimento populacional levaram alguns governos a ver o aumento da taxa de natalidade como uma solução demográfica e econômica.
A taxa de fertilidade (número médio de filhos por mulher) diminuiu nas últimas décadas a nível mundial. Esse declínio foi observado em muitas regiões, especialmente nos países em desenvolvimento. Fatores como o acesso a métodos contraceptivos, a educação das mulheres, a urbanização e as mudanças nas expectativas sociais contribuíram para essa tendência.
A nível global, a taxa global de fertilidade (TGF) caiu abaixo dos níveis de reposição, que é de aproximadamente 2,1 filhos por mulher, e é previsto que continue diminuindo no futuro. Estimativas e projeções da CEPAL e da Divisão de População das Nações Unidas confirmam um crescimento cada vez menor da população na região latino-americana, consequência da diminuição da fertilidade. A TFR da América Latina e do Caribe em 2022 é estimada em 1,85 nascidos vivos por mulher, cifra que está abaixo do nível de reposição desde 2015. A projeção indica que seguirá caindo e chegará a 1,68 nascidos vivos por mulher em 2100.
À medida que as taxas de fertilidade diminuem, a proporção de pessoas idosas na população aumenta. Isso pode gerar desafios econômicos, como uma força de trabalho menor e maiores gastos em saúde e aposentadoria. Portanto, alguns governos veem o aumento da taxa de natalidade como uma solução para manter uma economia dinâmica.
A maternidade como destino
Além dos elementos demográficos, outros motivos para o culto à fertilidade incluem a emergência de muitos movimentos conservadores que promovem a ideia de que a maternidade é o principal papel das mulheres, muitas vezes em consonância com os valores tradicionais que defendem o princípio da família como a célula fundamental da sociedade.
“Parir, para parir! Todas as mulheres terão seis filhos! Todas! Que a pátria cresça!”, exclamou o presidente venezuelano Nicolás Maduro em um evento sobre um plano de assistência a grávidas. “A mulher foi feita para parir”, assegurou o presidente em 2020, embora a Venezuela esteja mergulhada em uma grave crise econômica há anos e o grupo de mulheres grávidas, em particular, seja um dos mais vulneráveis, como a ONG Caritas pôde denunciar ao revelar que 48% das mulheres grávidas avaliadas em seis estados do país estavam com desnutrição aguda.
Esse é um exemplo claro de retórica política que usa a maternidade como símbolo de patriotismo ou devoção à comunidade, vinculando a fertilidade à responsabilidade cívica. Mas a intenção dessas declarações é reforçar o papel da mulher centrado na maternidade e no cuidado do lar. Estimular à fertilidade é parte de uma agenda mais ampla usada para afiançar estereótipos de gênero.
Mais soldados e mais bebês
Outra razão para promover esse neoculto tem a ver com a guerra. Nos últimos dias, Vladimir Putin, do Kremlin, decretou o aumento da taxa de natalidade como uma prioridade nacional. Analistas políticos relacionam esse propósito com o recrutamento agressivo de soldados para cobrir as quase mil baixas diárias registradas no confronto contra a Ucrânia, que se arrastar. “É necessário cuidar da população, aumentar a taxa de fertilidade”, disse Putin, “tornar moda ter muitos filhos, como ocorria na Rússia no passado: sete, nove, dez pessoas nas famílias”.
Em maio deste ano, Putin declarou que um dos principais objetivos do governo era aumentar a taxa total de fertilidade da Rússia, estabelecendo metas de 1,6 em 2030 e 1,8 em 2036. Em 2023, a taxa era de 1,41 na Rússia, frente ao 1,62 dos Estados Unidos. Para isso, está recorrendo a recompensas financeiras para incentivar os nascimentos: as mulheres russas que têm seu primeiro filho recebem um pagamento único de 6700 dólares.
Implicações para as mulheres
Sem dúvidas, essas políticas podem ter efeitos adversos nas mulheres. A pressão para ser mãe limita suas opções de vida e pode levar à estigmatização daquelas que escolhem não ter filhos. Essa pressão cria um entorno em que as decisões reprodutivas são influenciadas por expectativas sociais e políticas, gerando ansiedade e conflitos internos, especialmente em contextos em que a maternidade é valorizada como um dever ou um objetivo primordial.
Ademais, a carga das responsabilidades familiares geralmente recai desproporcionalmente sobre elas, perpetuando os papeis tradicionais e desiguais de gênero no trabalho e na vida pessoal. Nesse sistema, as mulheres são vistas principalmente como reprodutoras e cuidadoras, o que limita sua participação em outros âmbitos, como o trabalhista e o político.
A promoção da fertilidade obviamente entra em conflito com o direito ao aborto, criando uma dicotomia que limita a autonomia das mulheres. Em contextos em que a maternidade é enfatizada como um imperativo social, o aborto é visto como uma escolha negativa, punindo e criminalizando a prática. As posições pró-fertilidade de líderes políticos e religiosos que advogam pela defesa da vida desde a concepção geralmente reforçam essa tensão.
Embora algumas políticas possam oferecer recursos às mães, a falta de um sistema de cuidados e o pouco envolvimento dos pais, da escola e da comunidade tornam essas medidas insuficientes e repletas de desigualdades. A maternidade, nesse culto à fertilidade, é instrumentalizada como uma ferramenta para promover agendas políticas, o que tira das mulheres a capacidade de ver a possibilidade de ter filhos como uma escolha pessoal. Isso não é novidade. Historicamente, as decisões reprodutivas e familiares têm sido dominadas por normas patriarcais, instrumentalizando a maternidade como um valor sob o controle masculino. Em última análise, é uma questão de poder.
Livre escolha
As feministas alertaram que a insistência na maternidade como um dever restringe o direito das mulheres de decidir sobre seus próprios corpos, perpetua os papeis tradicionais de gênero e condena quem optam por não ser mães, sobretudo porque as políticas pró-fertilidade não levam em conta as realidades econômicas enfrentadas por muitas mulheres, como o custo da criação dos filhos e a falta de apoio no local de trabalho. É fundamental que as políticas de saúde reprodutiva sejam elaboradas de maneira integral, considerando todas as opções e direitos das mulheres.
Os líderes políticos devem adotar um enfoque mais equitativo, menos manipulador e mais respeitoso em relação à reprodução e à maternidade, que reconheça e valorize as escolhas das mulheres sem impor papeis tradicionais ou limitações à autonomia política. Em última instância, a verdadeira liberação das mulheres implica garantir sua capacidade de tomar decisões informadas e livres sobre suas vidas e seu papel na sociedade.
Autor
Psicóloga. Mestre em Políticas Públicas com enfoque de gênero. Especialista em Transformação Cultural e Coaching Ontológico. Diretora do FeminismoINC. Autora de “Inconveniente para Transformar” e “Atrevidas: Um manual de trabalho pessoal para o ativismo feminista”.