Mais uma vez, os cientistas políticos ortodoxos e democratas internacionais se assustaram e, enquanto aprendiam que aquele pequeno ponto lá em cima se chama Michigan, e ao lado dele está Guisconsi, e todos eles têm muitos eleitores, e como tanta gente vota no Trump, e quanto tempo leva para contar os votos, voltou para a agenda a questão de se a democracia está ou não em perigo.
Uma grande parte da ciência política se tornou uma ciência de, por e para a democracia. A democracia como um fim, não como um meio. Democracia reificada. E enquanto se discutem procedimentos e conceitualizações, a democracia dissemina valores preocupantes. E é aí onde está o maior problema de sua sustentabilidade. A democracia causa danos severos à democracia.
Há anos venho discutindo estas questões com colegas e por que não estrear no Latinoamérica21, ampliando o campo de combate.
Quando Fukuyama decretou o triunfo da democracia e o fim da história, ele se referia ao regime como uma condição para a possibilidade de uma vida digna”
Quando Fukuyama decretou o triunfo da democracia e o fim da história, ele se referia ao regime como uma condição para a possibilidade de uma vida digna. A democracia era o meio, mas o mais importante são os valores (simbólicos e materiais) de uma vida que vale a pena viver. Diversos trabalhos (junto a Carlos Peris falamos sobre isso em Merging legality with illegalities) mostram como se consolida a tolerância social aos mercados ilegais quando eles garantem os fins que a democracia deveria garantir, mas para os quais se mostrou ineficaz: gerar trabalho e rendimentos econômicos, proteção, justiça, previsibilidade e a perspectiva de um futuro melhor.
Ninguém quer que a democracia morra de fome. A discussão sobre a qualidade ou sustentabilidade da democracia é uma questão burguesa que, não obstante, se torna divertida após o quarto whisky (de malte e pelo menos 15 anos, por favor).
– A liberdade, por exemplo. Subjacente à democracia está a ideia de liberdade – responde um cientista político que sabe tanto sobre democracia quanto sobre partidos.
Logicamente, em um dado momento de sua vida, ele teve que fugir de seu país. Eu tive a sorte de decidir deixar o meu. Livremente. A liberdade, neste caso, é um valor. Os cidadãos estão dispostos a perder sua liberdade nas democracias atuais?
Quando os reality shows começaram a oferecer vida pública e, se você se comportar bem, fama, milhões de jovens se inscreveram para o confinamento. O ridículo veio em 2005, quando foi anunciado na Alemanha que seria realizado um Big Brother para toda a vida em uma vila artificial de 15.000 metros quadrados. A proposta teve mais de 25.000 candidatos.
O escândalo da Odebrecht gerou um terremoto na região porque trouxe à tona o que todos sabíamos que estava acontecendo (e que continua acontecendo). Enquanto a democracia peruana agoniza por suas sequelas, por exemplo, o próprio Odebrecht cumpre prisão domiciliar em sua mansão. Milhões de latino-americanos sairiam e causariam mais de um holocausto se tivessem a garantia de cumprir seu tempo em uma mansão como a de Odi. Ah, a democracia.
A liberdade sim ou sim, chora um candidato libertário na Argentina, enquanto, livremente, alguns políticos chilenos se esquecem de atualizar seus dados cadastrais. Liberdade sim ou não, ironiza Alejandro Dolina: se não, não temos liberdade de escolha.
– O que há de tão difícil sobre o conceito de democracia? – me perguntou outro que sabe mais sobre análise política do que a maioria e quase tanto quanto Osvaldo Soriano-. Aquele que perde as eleições, sai sem questionar. É isso aí.
Cagamos! O que vamos fazer agora que a democracia desapareceu nos iunaitestei?
Outro que também sabe muito, disse que a democracia contemporânea é caracterizada pela liberdade de expressão, pelos partidos políticos e pelas eleições regulares. Ainda bem que existem os dois últimos, porque os canais gringo censuraram o Presidente ao vivo!
– Ele está mentindo- disseram, e Evo Morales se conectou à rede porque pensou que não haveria rastros da OEA no Google.
Com a liberdade democrática, os meios de comunicação negaram aos cidadãos a possibilidade de ver ao vivo uma parte significativa da história: seu vergonhoso presidente dizendo coisas que envergonham”
Com a liberdade democrática, os meios de comunicação negaram aos cidadãos a possibilidade de ver ao vivo uma parte significativa da história: seu vergonhoso presidente dizendo coisas que envergonham (mas que desta vez envergonham de uma maneira que uma elite não quer ser envergonhada). Liberdade de decidir o que eles devem e não devem ver. China democrática. Compre Huawei.
Os partidos políticos permanecem. Em um estudo com Miguel Ramos (Corruption in Latin America: Stereotypes of Politicians…) mostramos como os políticos são estereotipados a partir de uma moralidade negativa (corruptos, mentirosos, ladrões). Isto é bastante lógico e conhecido. O preocupante é que este estereótipo afeta diretamente a percepção da justiça e afeta indiretamente os afetos, as emoções e os estados de ânimo. Rachadura!
Estamos no forno e, além disso, temos liberdade de expressão. Hoje tudo é gravado. Os jogadores de futebol perceberam que é melhor falar tapando sua boca com a mão. Os políticos, ainda não: suas incoerências são repetidas uma e outra vez pelas redes sociais. Estes são meus princípios, se você não gosta, eu tenho outros. Depende do lado do governo que me encontro e da oferta que me faça. Prudência e virtude não estão convidadas. Com tanto trabalho de arquivo circulando, levar a política (e sua democracia) a sério é absolutamente absurdo.
Felizmente, ainda temos a igualdade: todos são iguais na busca de uma vida digna, custe o que custar, e seguindo o caminho mais efetivo. Quanto ao resto, que se dane, enquanto a democracia cuida de si mesma. E enquanto ridiculariza alguns, enfurece a todos, exclui a muitos e condena apenas aqueles que perdem o poder.
É por isso que sua sustentabilidade está no relato, não nas evidências. Mas para isso, teremos que esperar até o próximo texto. Porque, democraticamente, eles limitaram meu espaço. Tudo tem um limite, ainda que alguns democratas não queiram aceitá-lo.
*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima
Foto de arribalasqueluchan! en Foter.com / CC BY-NC-SA
Autor
Professor e pesquisador no Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (CEI/IUL). Doutor em Processos Políticos Contemporâneos pela Univ. de Salamanca. Especialista em temas de corrupção, mercados ilegais e criminalidade.