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O impacto da Guerra da Ucrânia na América Latina

Nas análises sobre a Guerra da Ucrânia tendem a confundir-se os níveis. Tendemos a ser confrontados com reações emocionais, difundidas pelos meios e amplificadas pelas redes; com propaganda disfarçada de notícias e opiniões rigorosas, que são menos difundidas. Paralelamente, nos vemos submetidos a atualizações constantes sobre a zona de conflito, combinadas com visões mais globais, ainda que também mais desfocadas. Sabemos que existe censura. Mas a toda essa amálgama chamamos de informação e é nesta base que construímos os nossos critérios e tomamos decisões.

Seria conveniente, no entanto, afinar porque Rússia e Ucrânia não são Iémen, Iraque ou Afeganistão. Também não são o Cáucaso ou a ex-Iugoslávia. De fato, o impacto estrutural de um confronto híbrido que transborda do leste europeu e transcende de forma crescente no âmbito militar, será global e isto terá consequências mais significativas, porém também mais distantes e mais duradouras do que se pode pensar e publicar. 

A América Latina tem estado tradicionalmente exposta aos altos e baixos do sistema-mundo já que sua relação com a economia global é dependente, sendo o seu papel principal o de exportador de commodities. Além disso, as fragilidades de nossos sistemas financeiros expõem nossas moedas a altos e baixos que, tal como as atuais espirais inflacionistas, segmentam nossas economias e condicionam a vida dos mais vulneráveis. 

A conjuntura, por outro lado, também não ajuda. Antes de todo o inferno ter se desencadeado na Ucrânia, a situação nesta parte do mundo já era preocupante: o impacto da pandemia tinha sido devastador. A desaceleração parecia um fato consumado, ao mesmo tempo que a desigualdade havia voltado a correr solta. Em 2021, a pobreza extrema havia crescido quase 14% em toda a região. Até há alguns meses atrás, a América Latina parecia condenada a padecer alterações comerciais (consequência de mudanças na demanda internacional) com potencial para provocar turbulências como as vividas nos últimos tempos no Paraguai ou na Colômbia.

A guerra na Ucrânia, no entanto, está alterando tudo. Antes mesmo da Rússia tornar pública a sua resposta às sanções ocidentais, dispararam os preços internacionais de commodities como petróleo, gás, aço, níquel, urânio, metanol, fosfatos e trigo. A nível global já houve consequências: desde aumentos súbitos nas contas de energia a aumentos descontrolados de preços ou perdas enormes para várias empresas. Segundo os peritos, se a situação não melhorar, poderá haver problemas de abastecimento para a produção de bens tão básicos como microchips (e, portanto, dispositivos tecnológicos), plásticos e mesmo alimentos.

E toda esta situação, que implicações pode ter para a América Latina? 

A curto prazo e a nível micro, haverá, desde já, aumentos generalizados da inflação. Mas olhando para o longo prazo e a nível macro, em menos de um mês, a nossa região voltou a se erguer geopoliticamente. A rápida e eloquente aproximação dos Estados Unidos à Venezuela constitui um exemplo. Mas o petróleo de Maduro (que não é o único: o México também tem grandes reservas) é apenas um dos nossos grandes trunfos estratégicos face à escassez de matéria-prima que se avista para o Ocidente. Trinidad e Tobago e Guiana têm depósitos de gás; Colômbia e Guatemala, níquel; Bolívia, lítio; Chile, cobre; o Brasil, para além de produzir biocombustíveis, é, tal como o Peru e todo o arco andino, uma potência mineira. A Venezuela tem fosfatos e, para concluir, a Argentina produz trigo…

Todos estes atributos sob a forma de matéria-prima nos estão permitindo recuperar subitamente, especialmente aos olhos dos Estados Unidos e dos seus aliados, um interesse estratégico que durante os últimos vinte anos a Ásia tem mantido.  Esta região, no calor de crescimentos econômicos apoiados não só na solidez da economia chinesa, mas também em uma rede consistente de organizações multilaterais próprias (como a Organização de Cooperação de Xangai, que representa um terço do PIB mundial, a ACFTA, a AIIB e a iniciativa chinesa do Cinturão e Rota), estava sendo convertida em uma locomotiva da economia global e em um íman para os investimentos estrangeiros. 

Mas, paradoxalmente, a pressão geopolítica que agora a Rússia se vê submetida como consequência da Guerra da Ucrânia pode contribuir a fortalecer um bloco econômico que tem no seu núcleo uma sólida (e recentemente relançada) aliança estratégica entre Moscou e Pequim. 

A melhor prova da sua importância geopolítica é que praticamente nenhum país asiático – incluindo a Índia, Paquistão ou os Emirados Árabes Unidos – aplicará sanções contra Moscou. Além disso, não se trata de instituições desligadas da realidade: pouco a pouco têm vindo a desenvolver instrumentos financeiros concretos – como o UnionPay, CIPS, ou o Yuan digital,- que permitem aos cidadãos e comerciantes contornar o dia-a-dia e, portanto, prever a viabilidade de uma insubordinação geopolítica em grande escala que poderia beneficiar Pequim, lançando as bases para uma progressiva “desdolarização” da economia mundial.

Na América Latina, no entanto, embora a maioria dos nossos países também não imponha sanções a Moscou, o panorama geopolítico é diferente. A chave é que aqui não existem instituições multilaterais com suficiente força política, nem uma capacidade de exportação de bens manufaturados comparável à, por exemplo, do Sudeste Asiático, nem, evidentemente, ferramentas financeiras próprias.  

Além disso, as nossas economias estão altamente dolarizadas e, devido ao afastamento geográfico, é previsível que nem sequer seja possível cumprir o desejo de alguns de não bloquear a Rússia. Pelo contrário, tudo aponta para problemas imediatos com determinados fornecimentos (especialmente fertilizantes, que são fundamentais para a produção agrícola), para uma provável estagflação e para renovadas pressões geopolíticas que é muito provável que tomem forma na Cúpula das Américas que será celebrada em junho, em Los Angeles

Neste marco, nem a estabilidade política nem a equidade social estão garantidas. Em paralelo, os interesses chineses na região poderiam converter-se em objeto de pressão. De fato, embora a presença de Pequim na América Latina não seja tão determinante como na África, estrategicamente falando existem elementos que poderiam ser preocupantes desde a ótica ocidental, como a construção chinesa de infraestruturas críticas na área do Caribe ou as intensas relações agrícolas estabelecidas a partir do comércio de soja no Cone Sul. 

Olhando para o futuro, também poderia ser preocupante o quão receptiva a nossa região poderia chegar a ser ao estabelecimento de sistemas de compensação comercial como os promovidos por Pequim. Nesta matéria, resta saber até onde poderia chegar a pressão ocidental, embora caiba interpretar a possível ‘associação’ da Colômbia à OTAN como um aviso aos navegantes. 

Outro possível vetor de pressão externa poderia ser o ambiental. Nos últimos dias, o calor da Guerra da Ucrânia impediu-nos de valorizar em sua justa medida a seriedade de um recente informe das Nações Unidas que alerta, pela enésima vez, para a degradação ecológica irreversível sofrida pela Amazônia e para os graves riscos climáticos que a nossa região enfrenta. Com a Antártida, ambientalmente frágil e geopoliticamente sensível para os países do Cone Sul, ocorre algo parecido: o tratado internacional que protege a área contra incursões irresponsáveis expirará em 2048, e neste momento diversos atores estão tomando posições com a possível exploração de recursos como pano de fundo.

No final, o problema geopolítico subjacente permanece substancialmente inalterado, mesmo no contexto estratégico que parece estar inaugurando a Guerra da Ucrânia. Segue existindo um boom internacional de commodities que o hibridismo do conflito, na medida em que fragmenta politicamente o espaço global, complica mas não muda. Da América Latina, este deveria ser considerado o verdadeiro problema estratégico comum: acabará sendo este o caso? 

*Tradução do espanhol por Giulia Gaspar.

Autor

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Professor do Instituto Latino-Americano de Economia, Sociedade e Política da Univ. Federal de Integração Latinoamericana - UNILA (Brasil). Doutor em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS (Paris).

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