Um adágio antigo informa que “não se deve brincar nem jogar com o sofrimento dos outros”. Uma recomendação também antiga vaticina que “para todo problema complexo existe uma solução simples e sempre equivocada”. Um ensinamento transcendente informa que “a paciência é a irmã da prudência”. E o mago das letras russas, Liev Tolstói, imortalizou a máxima de que “todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.
O que sucedeu ao lamentável acontecimento de 7 de outubro de 2023 mobiliza todos os níveis dessas ponderações e qualquer tomada de posição sem elas como guia pode conduzir a temeridades.
A investida do Hamas ante civis desprotegidos e desarmados naquele 11 de setembro israelense foi uma ação sem-nome e não comporta escusas. Sempre foi muito difícil perdoar o imperdoável. E aquilo foi imperdoável. Mas um imperdoável não foi sem razão. Do contrário: foi uma ação, por mais odiosa que possa ter sido, produto da acumulação de rancor e ódio entre fiéis, de parte a parte e de família comum, em disputa pelo mesmo chão.
Um conflito histórico
Numa perspectiva bem longa, essas escaramuças entre judeus e árabes remonta a momentos bíblicos ambientados em Gênesis. Mas foi ao longo do século XIX, sob o Império Otomano, por volta de 1870, que a questão sionista que até hoje carcome a paciência e a prudência desses médio-orientais ganhou novos contornos. Judeus sefarditas, nesse momento do Oitocentos, começaram a conscientemente valorizar a língua hebraica como insumo para o revigoramento do nacionalismo judaico. E deu certo. Os anos que se seguiram foram de ampliação das demandas de afirmação, diferenciação e territorialização do povo judeu. E, por fim, veio o sem-nome da Shoah para promover a comoção mundial que serviu de base para a justificação do Estado de Israel.
Concomitante à criação desse Estado de Israel ocorreu a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. Tudo em 1948.
A Solução Final dos nazistas alargou a materialização de insanidades inauguradas na limpeza étnica praticada contra armênios e continuada nos extermínios em massa perpetrados por Estados comunistas ao longo do momento de extremos entre 1914 e 1945. Foi-se, nessas ações, longe demais. Fez-se, assim, necessário o aprimoramento da punição desses crimes incontestáveis.
Em 1929, a Convenção de Genebra mirou a proteção de prisioneiros de guerra. Mas a 2ª Guerra Mundial impôs desafios ainda maiores que foram definidos na punição de 1. crimes contra a paz, 2. crimes de guerra e 3. crimes contra a humanidade. Todos esses crimes foram impetrados, também e sobretudo, contra os judeus. Daí o impulso para a criação de um Estado de Israel. Mas a situação sempre foi mais complexa.
Os árabes, em todas as suas variações, reivindicam a mesma causa, as mesmas punições e o mesmo território. Por tudo isso, depois de 1948, a tensão entre judeus e árabes só fez aumentar. E os incidentes de 1956, 1967 e 1973 foram apenas mostras de suas desavenças eternas.
Os acordos de Oslo de 1993 situaram a possibilidade de uma “paz suportável”. Mas o assassinato, dois anos depois, do primeiro-ministro Isaac Rabin pôs fim às esperanças. Desde então que o conflito virou sem solução nem fim.
O papel do Ocidente
O que se viu, portanto, no 7 de outubro de 2023 e depois, por mais cruel que possa aparentar, foram simplesmente a continuação dessa trama. Mas, desta vez, com tons de maior irritação. Primeiro pela revisão do papel do Ocidente no mundo. Em seguida, pela tempestade perfeita protagonizada pela pandemia de Covid-19 e pela nova fase da tensão russo-ucraniana. E, por fim, pela violência da contraofensiva israelense contra os árabes após o ocorrido.
Desse modo, nos primeiros momentos após o 7 de outubro, os países ocidentais que sempre apoiaram a existência do Estado de Israel condenaram ostensivamente as ações do Hamas e, na sequência, os demais países árabes. Os países menos ocidentais e até mesmo antiocidentais pelas Américas, África e Ásia inicialmente hesitaram e alguns ignoraram a situação.
Voltando no tempo, os desdobramentos do 11 de setembro de 2001 complicaram em muito a relação de todos, ocidentais ou não, com o Mundo Árabe. A Guerra ao Terror do presidente George W. Bush gerou complicações difíceis de se superar. Quase de súbito, ser árabe virou sinônimo de ser terrorista em todas as partes. O presidente Barack H. Obama tentou remediar essa péssima impressão. Mas não conseguiu. A relação especialmente entre ocidentais – inclusive israelenses – e árabes só fez piorar.
Se nada disso bastasse, 2009 coincidiu com o momento de superação da crise financeira mundial de 2008 e, concomitantemente, com a afirmação dos países emergentes ancorados nos BRICS. Esses países, agindo em bloco, foram passando da qualidade de fórum de discussões para plataforma revisionista do sistema internacional saído de 1945. Essa intenção de revisão acelerou a alteração de consensos sobre o meio internacional – especialmente aqueles consensos fabricados por europeus e norte-americanos – e, com eles, os consensos sobre o Estado de Israel e as relações israelo-palestinas.
Revisionismo internacional
Foi nesse novo cenário que Israel lançou mão do seu “direito de defesa” e partiu para uma contraofensiva sem perdão contra o Hamas e o mundo árabe situado em Gaza. De lá pra cá, sob alegação de proteção da sobrevivência do povo judeu, as forças israelenses assassinaram mais de 23 mil árabes – em sua maioria, civis e desarmados. Observando a gravidade da situação, os sul-africanos identificaram nesse morticínio uma “intenção de genocídio” e impetraram uma ação na Corte Internacional de Justiça contra o Estado de Israel, surpreendendo o mundo inteiro com a inversão de valores. Perceba-se que uma denúncia desse tipo seria impensável antes da emergência de países revisionistas na cena internacional. Mas, agora, nesse cenário de valores em revisão, a denúncia foi apresentada e aceita pela Corte. Novos tempos.
Como fiador dessa revisão de preceitos e valores internacionais, o Estado brasileiro, sob a presidência de Lula da Silva, expressou solidariedade aos árabes e apoio à iniciativa da África do Sul, no dia 10 de janeiro de 2024, após uma reunião com o embaixador da Palestina em Brasília. No campo diplomático, essa decisão decorre simplesmente da mutação de perspectivas dos países revisionistas do sistema internacional e da proeminência do Brasil no interior desses países. No campo jurídico, esse apoio serviu para pressionar a Corte a aceitar a denúncia da África do Sul. No campo político, o Brasil tomou partido de uma situação que não é necessariamente política nem jurídica, tampouco diplomática. Talvez simplesmente tenha apostado na fixação de seu lugar na História.
Faltou ao Brasil paciência e prudência nessa aposta? Os dias dirão.
Autor
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorado en Relações Internacionais no Sciences Po (Paris).