A menos de uma semana das eleições gerais bolivianas, o debate não está centrado nos temas que deveriam ocupar a opinião pública, ou seja, as propostas e programas dos partidos. Existem diversos espaços de debate criados pelos meios de comunicação; a imprensa vem se esforçando por sistematizar os programas de governo, dividindo-os em áreas temáticas; a televisão organiza debates e entrevistas com candidatos, os jovens e as mulheres organizam suas perguntas, as redes estão repletas de sites que difundem as ideias centrais dos programas de governo, mas nada nisso consegue conquistar espaço na agenda política, ou gera argumentos que convençam os cidadãos. Os planejamentos são em certos casos repetitivos e em outros indiferenciados uns dos outros; ou, em diversos exemplos, o candidato recorre a argumentação diferente da empregada por seus companheiros de legenda política; nos piores casos, os candidatos parecem desconhecer os programas de governo que apresentaram ao Tribunal Supremo Eleitoral (TSE). Na verdade, a agenda política pré-eleitoral tem por foco confrontos e posicionamentos dos candidatos e dos eleitores com relação a contingências da história recente.
Uma questão que vem marcando a agenda política já há dois anos e continua a fazer parte do debate eleitoral é o posicionamento sobre os resultados do referendo 21F. A rejeição da maioria dos bolivianos à reforma constitucional que buscava eliminar os limites à reeleição do presidente – que ainda assim foi implementada – foi um divisor de águas entre o situacionismo e organizações aliadas que apoiam a liderança de Evo Morales, por um lado, e as diversas oposições políticas que defendem as instituições e o respeito ao voto, e se expressam por intermédio de comunicados do Comitê Nacional de Defesa da Democracia (Conade), mobilizações cívicas, plataformas cidadãs e nos discursos de pelo menos três candidatos à presidência: Carlos Mesa, Óscar Ortiz e Victor Hugo Cárdenas.
As tensões regionalistas que haviam se atenuado desde a aprovação da constituição voltaram a despertar”
Outro eixo no confronto discursivo surgiu em torno dos incêndios em Chiquitania, onde em meio a uma grande tragédia humana foram reveladas arestas políticas e visões conflitantes sobre o país quanto à preservação da floresta, da mãe natureza, e dos territórios indígenas, em oposição ao desenvolvimento, à produção agrícola intensiva e à degradação do meio ambiente por meio de novos assentamentos, mas sobretudo entre as pessoas que exigem que o governo declare um “desastre nacional” como reação óbvia à impotência das autoridades contra o fogo, e aquelas que resistem a essa medida. Ao mesmo tempo, as tensões regionalistas que haviam se atenuado desde a aprovação da constituição voltaram a despertar; e agora, depois de uma década, presenciamos a reativação dos discursos federalistas e do grito de “a terra pertence aos ‘cruceños’ [os moradores de Santa Cruz de la Sierra] e sempre pertencerá aos ‘cruceños'”, em uma reunião recente do Legislativo do departamento. A 10ª Marcha Indígena também é reflexo desse acontecimento, mas de outro ângulo: a defesa do hábitat, da “casa grande” dos povos indígenas diante da devastação causada por políticas governamentais.
De maneira bastante curiosa, o Órgão Eleitoral Plurinacional também se converteu em objeto de disputa política, pois, diante de suas ações recentes, há dois discursos claramente posicionados: aqueles que questionam a parcialidade de suas decisões, a falta de transparência e a ausência de aplicação equitativa das normas, versus aqueles que defendem e justificam sua atuação, sinalizando que o órgão está exercendo suas funções adequadamente. Assim, os programas de governo foram eclipsados pelos acontecimentos políticos e pelas emergências que a realidade impõe.
Foto de auldhippo em Foter.com / CC BY-NC
Autor
Socióloga. Membro do Centro de Estudos de Realidade Econômica e Social - CERES (Bolívia). Doutora em Processos Sociais e Políticos na A. Latina pela Univ. de Arte e C. Sociais - ARCIS (Chile).