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O valor de Navalny

Aleksei Anatolyevich Navalny foi, de uma forma ou de outra, assassinado pelo regime de Vladimir Putin. Muitos pensavam que tinha os dias contados, já que há anos proliferavam os indícios de que as autoridades russas pretendiam acabar com sua vida. Faltando apenas um mês para a próxima eleição presidencial da Rússia, Navalny começava seu quarto ano consecutivo na prisão. E seu caso poderia se tornar ainda mais incômodo. Esse terrível fato necessariamente exige reflexão.

Um opositor persistente

Navalny dedicou sua trajetória pública a questionar o regime de Putin (e o breve interregno de Dmitry Medvedev) através das redes sociais. Sua força foi liberada ao se tornar um blogueiro extremamente popular que denunciava a corrupção dos altos hierarcas da autocracia russa. Sua carreira política começou cedo. Durante oito anos (1999-2007), após concluir seus estudos universitários em finanças, Navalny trabalhou no partido Я́блоко (“maçã”), de orientação liberal. Embora compartilhasse essencialmente da ideologia do partido, seu nacionalismo e oposição veemente à imigração o levaram a deixar esse partido.

Em dezembro de 2011, foi preso por duas semanas depois de reunir dezenas de milhares de seguidores que protestavam contra irregularidades cometidas nas eleições legislativas celebradas nesse mesmo mês. Naquela época, já havia criado a Fundação Anticorrupção, da qual produziu vários livros e documentários. Com eles, acusou Medvedev, considerado por muitos como um fantoche de Putin, que foi presidente da Federação Russa entre 2008 e 2012. Navalny não só foi preso várias vezes, mas também começou a sofrer agressões físicas. Em meados de 2019, depois de sair da prisão, denunciou uma primeira tentativa de envenenamento ao ter reações estranhas na pele.

Sacrifício por uma causa

Essas graves advertências, no entanto, não conseguiram deter o dissidente, que continuou seu trabalho. Um ano depois, em 20 de agosto de 2020, o avião de passageiros em que ele viajava para Moscou teve que aterrissar com emergência diante dos sintomas preocupantes que  Navalny apresentou subitamente. De imediato, os governos de Paris e Berlim solicitaram permissão para o acolherem. Moscou aceitou e, no dia seguinte, foi levado até um hospital da capital alemã, onde foi realmente determinado que ele havia sido envenenado.

Mas foi um evento incomum que definiria seu destino, bem como o sentido de sua vida inteira: cinco meses depois, em 17 de janeiro de 2021, Navalny regressou à Rússia com sua esposa, apesar das autoridades russas advertirem publicamente que o capturariam  assim que saísse do avião. Apesar dos protestos que ocorreram poucos dias depois em mais de cem cidades russas, Navalny foi levado de uma prisão para outra. Enquanto isso, determinava-se judicialmente, de forma bem previsível, sua culpa nas acusações contra ele.

As condições de seu cativeiro pioraram progressivamente. Isolamento, má alimentação, privação de sono, frio extremo e outras formas de punição propiciaram suas greves de fome. Finalmente, em dezembro de 2023, o transferiram para uma colônia penal na remota e gelada Kharp, onde morreu na semana passada.

Finitude e sentido da vida

Com sua morte, Navalny nos obriga a pensar no sentido da vida. Todos sabemos que vamos morrer, mesmo que raramente saibamos quando e como. Exceto nas situações mais extremas, o caráter mediato e imprevisível da morte tende a removê-la de nossos pensamentos cotidianos. Entretanto, para o ser humano, viver não é simplesmente existir. O característico da vida humana é a possibilidade de escolher; é o desafio e a obrigação de construir uma história pessoal dotada de algum sentido, no marco das limitações que a realidade nos impõe. Consequentemente, é a nossa mortalidade comum que nos leva a buscar o sentido das nossas vidas.

Como a vida é composta de ações, o sentido que damos a ela tende a moldar o de nossa vida em geral. Mas as ações não têm um sentido intrínseco. Mediante a faculdade de julgamento, o outorgamos em dois planos que poderíamos denominar de dialógicos. Um é o plano coletivo, em que a comunidade julga o valor da ação do indivíduo, enquanto o outro é o plano do indivíduo, que, em diálogo consigo mesmo, julga o valor de suas próprias ações. Em ambos os casos, o sentido da ação é geralmente determinado pelo valor que atribuímos a ela, onde o termo valor assume seu duplo significado de utilidade e valentia.

Transcendência de uma decisão

Quem sempre atua em função do julgamento coletivo tende a se acomodar à ordem vigente e reforçá-lo. Quem, em troca, procura se comportar conforme sua própria consciência não só conquista a si mesmo, mas exerce e reafirma a consciência de sua existência individual para convertê-la, assim, em uma vida totalmente humana. É por isso que geralmente se supõe que a ação desenvolvida conforme a própria consciência requer um grande valor. Por isso que Sócrates também disse que uma vida sem exame não merece ser vivida. Às vezes, entretanto, a consciência pode ditar imperativos tão exigentes que põem em risco a própria vida, como aconteceu com Navalny.

Jorge Luis Borges, em uma de seus relatos de O Aleph, escreveu que «qualquer destino, por mais longo e complicado que seja, consiste na realidade “de um só momento”: o momento em que o homem sabe para sempre quem é». Para Navalny, esse momento possivelmente chegou quando decidiu retornar à Rússia no início de 2021. Tal decisão choca quem o conhece, pela serenidade e o caráter quase suicida com que se aproximou desse destino trágico, bem como a questão de sua utilidade. O enorme valor requerido para dar esse passo é inquestionável, entendendo aqui valor como valentia, mas podemos dizer que o sacrifício foi útil, que valeu a pena? Em termos políticos, quais foram os resultados concretos que essa decisão conseguiu produzir?

O exemplo que fica

Em uma era de hiperconectividade como a atual, as ditaduras substituíram os massacres coletivos pelo castigo aos indivíduos mais exemplares. Essa iniciativa é cruelmente eficaz, desde que as ações desses indivíduos não despertem uma reação efetiva da sociedade contra o sistema autoritário. O usual, porém, é que o peso do que Étienne de la Boétie chamou de servidão voluntária se imponha, infelizmente, sobre todo o resto.

Mas mesmo quando isso acontece, o valor de pessoas como Navalny não deixa de nos desafiar profundamente. Decisões como a dele decorrem da necessidade pessoal de que as ações estejam à altura dos compromissos éticos que ela se impõe. Em outras palavras, Navalny não se decepcionou. Nesse apego à sua consciência está a exemplaridade e o valor de suas ações, bem como o sentido final de sua vida. Por outro lado, só Deus sabe quantas consciências se acenderão pela centelha de sua determinação, ou até onde chegarão as consequências diretas ou indiretas de seu exemplo. Todos sabemos que, sem pessoas como Navalny, a liberdade hoje não passaria de uma quimera. Cabe a nós garantir que essa possibilidade não acabe se tornando realidade.

*Texto originalmente publicado no Diálogo Político

Autor

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Coordenador Nacional de Transparência Eleitoral para México e América Central. Mestre em Governança, Marketing Político e Comunicação Estratégica pela Univ. Rei Juan Carlos (Espanha). Professor universitário.

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