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Os desequilíbrios de poder na saúde global

Co-autora Pía Riggirozzi

A América Latina representa 8% da população mundial, concentra uma em cada cinco das infecções e cerca de um terço das mortes causadas pelo Covid-19 a nível mundial. A metade desses casos ocorreu no Brasil, o país com o terceiro maior número absoluto de casos, atrás apenas dos Estados Unidos e da Índia, e o segundo país com maior número de mortes no planeta. Argentina, Colômbia, Cuba, Equador e Paraguai também estão entre os países com as maiores taxas de mortalidade do mundo. Entretanto, apenas 16,6% da população da América Latina e do Caribe foi totalmente vacinada contra o coronavírus.

Longe de haver uma distribuição equitativa de vacinas, as poucas disponíveis foram monopolizadas por alguns poucos países. De fato, antes da chegada efetiva das vacinas, os países mais ricos já haviam realizado compras antecipadas para assegurar inclusive mais vacinas do que o necessário. Enquanto a América Latina acordou por contrato vacinas para cobrir pouco mais de um em cada dez habitantes e a África a apenas dois, os EUA e os países da União Europeia asseguraram duas vacinas por habitante, e o Canadá, mais de cinco.

Neste contexto, o Banco Mundial e o Fundo COVAX da OMS anunciaram em 26 de junho uma estratégia de financiamento para a distribuição mundial de vacinas a fim de acelerar as entregas aos países em desenvolvimento. Cabe se perguntar se estas estratégias podem fornecer respostas, enquanto as vacinas seguem sendo um bem de mercado. Entretanto, se há uma coisa que se tornou clara, é que ninguém está seguro até que o mundo inteiro esteja seguro, especialmente em face da ameaça de novas variantes da doença.

Um apartheid sanitário

O que se tornou evidente é que a escassez de vacinas e sua distribuição injusta aumentou as inequidades e as desigualdades, promovendo um apartheid sanitário. De fato, dentro da América Latina, a região mais desigual do mundo, também se observam grandes desigualdades. Enquanto no Chile e no Uruguai mais de 70% da população já recebeu uma dose e na Argentina mais de 50%, na Nicarágua menos de 4% e no Haiti 0,5%. Na região como um todo, o ritmo é lento e a maioria dos países depende de flutuações globais para receber vacinas.

A acumulação exacerbada de vacinas pelos países ricos manifestou um nacionalismo imunológico centrado no interesse nacional definido em termos de poder de produção e distribuição. Esta dinâmica reduziu a disponibilidade de vacinas para países do Sul e prejudicou o multilateralismo, afetando a cooperação e a solidariedade global.

Diante desta situação, foram lançadas algumas iniciativas globais para ampliar o acesso às vacinas para os países em desenvolvimento, como o mecanismo COVAX. A expectativa era que 92 países de baixa e média renda tivessem o mesmo acesso que os países ricos, independentemente de sua capacidade de pagamento. Entretanto, estima-se que a COVAX apenas poderá cumprir suas metas em 20% em junho do próximo ano.

Negociações individuais

Longe de ativar mecanismos para compras conjuntas, negociações de preços ou lobby para melhorar as condições de acesso, o que prevaleceu na região foram ações individuais e isoladas para obter acesso às vacinas. Foi estabelecida uma lógica de divisão onde a capacidade de acumular vacinas sem sanção internacional se somou ao poder dos termos de troca das grandes empresas farmacêuticas. Como resultado, os países latino-americanos ficaram sem margem de manobra enquanto suas sociedades absorviam os efeitos da iniquidade.

Além das demoras e das violações de contrato, muitos fabricantes impuseram diferentes preços e condicionalidades. O laboratório Pfizer, por exemplo, solicitou a certos países ativos soberanos como garantia contra o custo de processos judiciais futuros, ou a inclusão de cláusulas que reduziram a responsabilidade da empresa por possíveis efeitos adversos durante o processo de negociação, como no caso do Peru.

Apesar disso, houve uma resposta tépida para tentar garantir o acesso às vacinas. Uma das poucas iniciativas foi a do presidente costarriquenho Carlos Alvarado, que buscou tornar público o conhecimento, a propriedade intelectual e as informações relacionadas às tecnologias sanitárias contra a Covid-19. Embora o Repositório Livre de Recursos Técnicos fosse apoiado por 37 países, ele não teve sucesso no final.

Outro exemplo tem sido o pedido de suspensão dos direitos de propriedade intelectual para medicamentos e produtos sanitários durante a pandemia. Cerca de 100 países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) aderiram – total ou parcialmente – à proposta conjunta da Índia e da África do Sul. Na América Latina, Argentina, Venezuela e Nicarágua expressaram total apoio à iniciativa, enquanto o Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador e El Salvador se propuseram a discuti-la. No entanto, o Brasil se posicionou junto com o grupo de países desenvolvidos.

Recentemente e diante dos excedentes de vacinas nos países desenvolvidos, começaram as doações. Neste cenário, a diretora da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), Carissa Etienne, pediu aos países do G7 para priorizar a América Latina. No entanto, deixar os países da região à mercê de doações, créditos ou financiamentos externos para ter acesso às vacinas está longe de ser um compromisso real e multilateral para superar as barreiras estruturais de acesso às vacinas e patentes.

Desenvolvimento local: poderá iluminar a mudança?

Por outro lado, grandes laboratórios outorgaram licenças de produção para um pequeno número de empresas e contornaram empresas públicas e privadas em países em desenvolvimento. Neste marco, Argentina, Brasil e México, os três países com maior capacidade de produção, conseguiram celebrar acordos de transferência de tecnologia através de licenças de emergência fornecidas pelos laboratórios.

Cuba, por outro lado, foi o primeiro país da região a ter suas próprias vacinas, enquanto Argentina, Brasil, México e Chile se juntaram à busca. Mesmo assim, a persistente dependência tecnológica dos medicamentos biológicos e biotecnológicos atenta contra a tão urgente e necessária política regional que ajuda a coordenar uma maior capacidade de produção local e regional.

Neste cenário, a fragmentação da região e o distanciamento político dos países os impediram de unir forças e avançar de maneira conjunta no apoio a estas iniciativas, para contribuir para posicionar a região no cenário global. Não houve coordenação regional, nem houve nenhum mecanismo de cooperação regional para reverter os desequilíbrios de poder na saúde global. A região deixou passar uma oportunidade histórica de enfrentar a pandemia de uma forma multilateral.

*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima

Pía Riggirozzi é professora de Política Internacional na Universidade de Southampton (Inglaterra). Doutorado em Política e Relações Internacionais pela Universidade de Warwick. Mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Miami e FLACSO-Argentina.

Autor

Profesora de Relaciones Internacionales de FLACSO-Argentina y de la Facultad de Ciencias Sociales de la Universidad de Buenos Aires (UBA). Doctora en Ciencias Sociales por la UBA.

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