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Por que imigrantes apoiam políticas anti-imigração?

O apoio dos imigrantes às políticas anti-imigração revela como as hierarquias internas, as narrativas morais e as dinâmicas digitais moldam novas formas de pertencimento e exclusão dentro das próprias diásporas.

Embora não sejam uma novidade, os discursos anti-imigração vêm reassumindo protagonismo em campanhas eleitorais, reformas legislativas e nas chamadas guerras culturais, principalmente a partir da ascensão de partidos e movimentos de extrema direita nos últimos anos. Nos Estados Unidos, na Europa e na América Latina, o sentimento anti-imigrante tem sido catalisador da indignação popular. Por meio de diferentes narrativas que visam instrumentalizar emoções e causar medo, a imigração, especialmente do Sul global, tem sido associada a crises econômicas, violência e problemas sociais.

A difusão de conteúdos que expõem ou atacam imigrantes, impulsionada pelas plataformas digitais, tem fortalecido o ativismo anti-imigração. Parte desses ativistas atua como influenciador ou mantém perfis monetizados. Seus conteúdos recorrem a narrativas conspiratórias, como a ideia de “reconquista” diante de uma suposta invasão étnica e cultural.

Há também ativistas que usam linguagem jornalística para “noticiar” incidentes envolvendo imigrantes, além de movimentos ultraconservadores que se apresentam como pró-trabalho, pró-habitação ou pró-segurança. A desinformação permeia esse cenário, como no caso da agressão a um idoso em Torre Pacheco, na Espanha, em julho de 2025, que desencadeou ataques a imigrantes, especialmente africanos, e confrontos violentos conhecidos como  “caça a imigrantes”.

Nesse cenário, chama a atenção um fenômeno específico: indivíduos ou grupos de imigrantes latino-americanos que apoiam agendas anti-imigração e movimentos de extrema-direita. O caso de Portugal é ilustrativo. O país que, depois dos anos 2000, passou a ser citado como referência de políticas migratórias mais inclusivas, aprovou em 2025 uma nova lei que endurece o acesso a vistos, restringe o reagrupamento familiar e limita o visto de procura de trabalho a perfis de alta qualificação, com efeitos diretos para brasileiros, maior comunidade estrangeira no país.

Essas mudanças legislativas contaram com o apoio de parte expressa da diáspora brasileira que vive em Portugal que passou a ocupar as redes sociais para reproduzir as narrativas governamentais e se mostrar alinhada ao endurecimento das regras de entrada e permanência no país para os novos imigrantes. O Chega, partido de extrema-direita que liderou as mudanças a partir de um agressivo ataque às comunidades migrantes, conta com brasileiros eleitos pelo partido em nível local e nacional.

Nos Estados Unidos, parcelas do eleitorado latino-americano têm apoiado as políticas anti-imigração de Donald Trump, que incluem deportações, detenções de imigrantes e um controle mais rígido das fronteiras. No Chile, imigrantes venezuelanos têm manifestado apoio ao candidato de extrema direita, José Antonio Kast, apesar de o político ter pautado sua campanha presidencial em declarações que responsabilizam os próprios venezuelanos pelo aumento da criminalidade no país, além de defender propostas como o “Escudo Fronterizo”, um plano que prevê a disponibilização de aviões para imigrantes que desejem deixar o país voluntariamente.

Em todos esses casos, imigrantes acabam atuando como legitimadores de agendas excludentes, oferecendo ao discurso anti-imigração um rosto que combina a experiência de deslocamento com a adesão a projetos nacionalistas.

O aparente paradoxo nos leva à seguinte questão: por que esses imigrantes têm apoiado agendas anti-imigração? As razões são diversas, mas o argumento moral que distingue entre “bons” e “maus” imigrantes ajuda a compreender esse apoio. Nesse enquadramento, o “bom migrante” — aquele considerado merecedor por não representar risco à sociedade receptora — se coloca como alguém que entrou legalmente no país ou se regularizou, cumpre as normas e respeita as leis, paga impostos, trabalha sem depender do Estado, conquista seu espaço pelo esforço individual e rejeita a posição de vítima.

Quando um latino, um brasileiro em Portugal ou um venezuelano no Chile defende o endurecimento da política migratória, o discurso ganha uma legitimidade específica: a autoridade moral de quem “sabe o que é migrar” e, justamente por essa experiência, reconhece a necessidade de barreiras e filtros migratórios mais rígidos. Esse tipo de engajamento ganha força em um ambiente marcado por desigualdades internas nas próprias diásporas. Narrativas como “já estamos integrados”, “seguimos as regras” ou “amamos este país” funcionam tanto como afirmação identitária quanto como fronteira simbólica em relação a recém-chegados, refugiados ou imigrantes em situação irregular

Pesquisas sobre comunidades latinas nos Estados Unidos mostram que segmentos com maior escolaridade, renda mais alta ou cidadania consolidada tendem a expressar maior simpatia por medidas de controle, especialmente quando percebem competição por empregos, pressão sobre serviços públicos ou risco de associação a identidades estigmatizadas.  Nesses casos, a adesão a discursos anti-imigração opera como sinal de alinhamento ao “nós” nacional, uma espécie de credencial moral para demonstrar lealdade ao país de acolhida. 

As plataformas digitais amplificam esse movimento ao favorecer conteúdos emotivos, antagonismos morais e narrativas simplificadas sobre ordem e desordem. Estudos etnográficos com ativistas anti-imigração ligados ao Chega mostram a circulação intensa de conteúdos em plataformas como X, Youtube e TikTok que misturam referências históricas idealizadas, imaginários coloniais e dados seletivos sobre criminalidade e uso de políticas sociais.

Interesses econômicos também se entrelaçam a essas dinâmicas. Imigrantes que oferecem serviços de consultoria migratória, intermediação de moradia ou apoio documental, dependem da existência de sistemas burocráticos complexos.  Situações em que processos de regularização se tornam mais difíceis criam nichos de mercado para quem domina a linguagem jurídica, os fluxos administrativos e as redes de contatos. Em certos contextos, imigrantes que conquistaram uma posição consolidada veem na política restritiva uma forma de organizar o campo migratório a seu favor e transformá-lo em um modelo de negócios rentável.

A heterogeneidade das comunidades migrantes, especialmente entre latino-americanos, é outra variável que explica a adesão de alguns imigrantes a pautas anti-imigração. Diferenças de classe, raça, origem nacional, gênero, idioma, capital cultural e redes de apoio resultam em acesso desigual a direitos e oportunidades, configurando o que autores descrevem como “castas” migrantes. No topo, perfis brancos, escolarizados, ligados a classes médias ou altas e a empresas multinacionais recebem uma hospitalidade seletiva, com vistos rápidos, regimes fiscais vantajosos e acesso facilitado à moradia, à educação e à saúde. Na base, grupos racializados, trabalhadores precarizados, refugiados e pessoas com situação documental frágil enfrentam maior violência institucional, estigmas e barreiras de acesso.

O debate sobre “boas” e “más” migrações atravessa tanto discursos partidários quanto interações cotidianas e digitais entre as próprias comunidades. Quando políticas migratórias distinguem entre investimentos milionários e trabalhadores de baixa renda ou entre vistos altamente qualificados e filas de regularização, a mensagem é clara: alguns corpos e trajetórias são mais desejáveis que outros. O apoio de certos imigrantes a políticas anti-imigração é revelador de como o campo migratório contemporâneo é marcado por hierarquias internas, distinções e estratégias de pertencimento que redistribuem privilégios no interior das próprias diásporas.

*Esse texto integra o projeto de pesquisa “Ativismo migrante em plataformas digitais em apoio a políticas de extrema direita e anti-imigração” financiado pelo CNPq (processo nº 403377/2024-2) eFAPESP  (processo nº 2024/20729-0) e desenvolvido no PPGCOM ESPM

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Professora da Escola Superior de Publicidade e Marketing, ESPM (São Paulo). Coord. do grupo de pesquisa Deslocar - Interculturalidade, Cidadania, Comunicação e Consumo. Pesquisadora do Instituto de Comunicação da Univ. Autônoma de Barcelona.

Pesquisador de pós-doutorado na Escola Superior de Publicidade e Marketing, ESPM (São Paulo, Brasil), com bolsa do CNPq. Doutor em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Membro do grupo de pesquisa Deslocar - Interculturalidade, Cidadania, Comunicação e Consumo.

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