Uma região, todas as vozes

L21

|

|

Leer en

Porque vários países andinos estão sofrendo suas maiores crises hídricas ao mesmo tempo?

O papel do páramo no fornecimento de água para o continente não é apenas fundamental do ponto de vista ecológico, mas também social e econômico.

Este ano, Colômbia e Equador estão sofrendo a pior crise hídrica de sua história. Na capital colombiana, a cada nove dias é cortado o serviço de água potável por um dia inteiro, e no Equador há cortes de energia – gerada principalmente com recursos hídricos – de até 10 horas por dia. A razão é tão simples quanto dramática: os reservatórios de água que abastecem as hidrelétricas e fornecem água potável foram drenados. Como dois países em pleno crescimento econômico chegaram a uma situação tão extrema? Muito tem a ver com as mudanças climáticas, mas ainda mais com o manejo deficiente de um ecossistema natural fundamental: o páramo andino.

O que é o páramo andino?

O ecossistema conhecido como páramo está acima do limite da floresta (geralmente a 3.500 metros acima do nível do mar) no Norte do Andes (Venezuela, Colômbia, Equador e Peru), com extensões menores na Costa Rica e no Panamá. Nessa altitude, o clima é muito frio e desenvolve-se um ecossistema aberto, dominado por pastos, arbustos, uma diversidade de pequenas ervas e formas de crescimento espetaculares, como almofadas e rosetas gigantes, bem como os emblemáticos frailejones e bromélias gigantes. Esse ecossistema é um habitat por excelência para os animais mais característicos dos Andes: o urso-de-óculos, a anta da montanha e o condor andino. Essa riqueza e singularidade da flora e da fauna fazem do páramo um dos ecossistemas de alta montanha mais diversos do mundo.

No total, o páramo cobre cerca de quatro milhões de hectares, o que corresponde a menos de 5% da superfície dos países que o compõem. Entretanto, sua importância econômica e social é proporcionalmente muito maior. A alta montanha tropical, nas latitudes em que os páramos estão localizados, geralmente são cobertas por neblina e recebem muita chuva. Isso torna o páramo muito úmido e forma-se uma grande biomassa, principalmente de pastos (palha), que cobre o solo.

Uma vez mortas, as folhas desse manto de plantas são incorporadas ao solo e, devido à lenta decomposição causada pelas baixas temperaturas, a matéria orgânica se acumula no solo. A vegetação densa e o solo orgânico fazem com que todo o ecossistema se comporte como uma esponja, retendo grande parte da abundante água que cai, distribuindo-a para áreas úmidas, córregos e rios, formando assim a base do sistema hídrico de uma parte importante da América do Sul. Esse serviço ecossistêmico assegura o equilíbrio ecológico muito além da zona montanhosa, e não é exagero dizer que, sem os páramos, os vales interandinos, a floresta amazônica e a floresta tropical do Pacífico não seriam como os conhecemos.

O papel do páramo no fornecimento de água para o continente não é apenas fundamental do ponto de vista ecológico, mas também social e econômico. Mais da metade da população dos Andes do Norte, incluindo toda a população de Bogotá e Quito, pega água diretamente do páramo, tão pura que quase não precisa de tratamento para potabilização. Em ambos os países, a geração de eletricidade depende em grande parte da água originada na alta montanha. E a agricultura andina de flores e batatas, e até mesmo as extensas plantações de arroz e verduras na costa desértica do norte do Peru, são irrigadas com água dos páramos por meio de sistemas de canais com mais de cem quilômetros de comprimento.

Qual é a causa da crise hídrica nos Andes do Norte?

As anomalias nos padrões de precipitação nos últimos anos, causadas pelo aquecimento global e por fenômenos El Niño e La Niña mais irregulares do que antes, contribuíram para que esse ano fosse extremamente seco em toda a cordilheira andina. Esse volume menor de água na forma de chuva e neblina no páramo, por sua vez, resultou em menos água sendo distribuída para córregos, rios e reservatórios de água potável e energia hidrelétrica. Isso levou ao esgotamento das reservas das torres de água nas montanhas, o que está causando cortes nos serviços públicos básicos do país.

Mas a culpa não é só apenas da mudança climática, que só acelerou a crise. Durante décadas, os páramos receberam pouca atenção da sociedade andina e de seus governos. Enquanto isso, inúmeras atividades agrícolas descontroladas, como o cultivo mal planejado de batatas, o sobrepastoreio e a queima associada da vegetação, devastaram a vegetação natural do páramo e corroeram seus solos negros e orgânicos, danificando assim a esponja natural das altas montanhas.

Além disso, os agricultores dos altos Andes, marginalizados pelas instituições governamentais, não conseguiram aplicar práticas sustentáveis em suas fazendas e foram forçados a ir ainda mais longe no páramo para encontrar outras terras para suas plantações e animais. Por fim, projetos de investimento econômico, como mineração de metais, construção de estradas e barragens hidrelétricas, contribuíram para a degradação do páramo. Essa destruição ambiental tem sido a verdadeira causa da perda da capacidade dos páramos de regular a água nos Andes, e a mudança climática é “apenas” um fator que acelera essa crise.

Uma mudança de rumo

Na última década, após muitos alertas do meio acadêmico e de ONGs, e graças às revoltas das comunidades rurais andinas em defesa do território e da água e, principalmente, contra a mineração, os problemas que afetam o páramo começaram a se tornar mais visíveis. Hoje, grande parte dos andinos está ciente da relação entre o páramo e o acesso à água e de que é necessário cuidar da torre de água com suas esponjas naturais. Finalmente, o páramo atrai a atenção do sistema político e da sociedade.

Mas será que é tarde demais? Perdemos a batalha contra a degradação ambiental? Felizmente, não. O setor público, as comunidades rurais, o meio acadêmico e as ONGs estão investindo esforços e recursos na gestão sustentável do páramo. Mais da metade desse ecossistema já está incluída em diferentes formas de conservação, e o restante está sob legislação específica para protegê-lo. Atualmente, há compensação disponível para os agricultores que decidem conservar ou restaurar suas terras, e há cada vez mais iniciativas ecologicamente corretas baseadas em agricultura sustentável ou ecoturismo.

Embora estejamos no caminho certo, ainda falta um pacto entre todos os setores da sociedade para reconhecer a responsabilidade coletiva e individual de manejar os recursos hídricos e energéticos inteligentemente, apoiar os habitantes rurais da alta montanha a serem aliados na gestão ambiental e para dar ao páramo o status que merece: um ecossistema fundamental para o futuro dos Andes.

*Texto produzido em conjunto com o Instituto Interamericano de Pesquisas sobre Mudanças Globais (IAI). As opiniões expressas nesta publicação são de responsabilidade dos autores e não necessariamente de suas organizações.

Autor

Doutor em Biologia pela Universiteit van Amsterdam. Professor Adjunto da Faculdade de Ciências Biológicas e Ambientais da Universidade San Francisco de Quito. Conselheiro de agências internacionais sobre meio ambiente e desenvolvimento sustentável

spot_img

Postagens relacionadas

Você quer colaborar com L21?

Acreditamos no livre fluxo de informações

Republicar nossos artigos gratuitamente, impressos ou digitalmente, sob a licença Creative Commons.

Marcado em:

COMPARTILHE
ESTE ARTIGO

Mais artigos relacionados