Há exatos vinte anos foi assinado o primeiro comunicado conjunto dos 12 países da América do Sul. Reunidos em Brasília nos dias 31 de agosto e 1º de setembro de 2000, os mandatários decidiram organizar uma agenda comum para a integração regional. Depois de quase dois séculos das independências da maior parte dos países da América do Sul, foi a primeira vez que todos os seus presidentes se reuniram sem a presença de outros países.
Foi um marco da integração fomentada pela diplomacia presidencial que deu origem à Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e à Comunidade Sul-Americana de Nações (Unasul) (2004). Em 2008, novamente em Brasília, essas iniciativas foram institucionalizadas com a assinatura do tratado constitutivo da União de Nações Sul-Americanas por todos os presidentes da região, documento que foi ratificado pelos parlamentos dos 12 países nos anos seguintes.
Em um seminário preparatório, em 2 de agosto de 2000, com a presença do ex-presidente argentino Raúl Alfonsín, o diplomata brasileiro Seixas Corrêa, parafraseando a expressão de Juscelino Kubitschek, cuja “Operação Pan-Americana” dos anos 1950 deixou legados como o Banco Interamericano de Desenvolvimento, afirmou que o processo vivido naquele momento poderia vir um dia a ser conhecido como “Operação Sul-Americana”.
A organização dos países da América do Sul já vinha sendo formulada desde a redemocratização. Em uma reunião do Grupo do Rio em 1993, o presidente Itamar Franco mencionou a criação de uma Área de Livre Comércio Sul-Americana, em clara referência e relativo contraponto à proposta de Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), que era a agenda hemisférica prioritária dos EUA.
A “Operação Sul-Americana”, liderada pelo Brasil, foi construída sobre três pilares: democracia, integração econômica baseada no regionalismo aberto e autonomia.
A “Operação Sul-Americana”, liderada pelo Brasil, foi construída sobre três pilares: democracia, integração econômica baseada no regionalismo aberto e autonomia. Elementos que foram lembrados nos discursos dos presidentes em Brasília.
O anfitrião Fernando Henrique Cardoso alertou que na hipótese de ruptura, ou ameaça de ruptura, da ordem democrática em qualquer país da América do Sul, os países manteriam consultas e adotariam as medidas necessárias para a defesa da democracia e a proteção dos direitos humanos. O comunicado conjunto dos 12 mandatários reconheceu que a paz, a democracia e a integração constituem elementos indispensáveis para garantir desenvolvimento e segurança regional.
O terceiro parágrafo do comunicado merece ser recordado integralmente. “América do Sul inicia o novo século fortalecida pela progressiva consolidação de suas instituições democráticas, pelo compromisso com os direitos humanos, a proteção do meio ambiente – aplicando o conceito de desenvolvimento sustentável –, a superação das injustiças sociais e o desenvolvimento de seus povos, pelo crescimento de suas economias, pelo empenho em manter a estabilidade econômica e pela ampliação e aprofundamento de seu processo de integração”.
Agenda econômica foi impulsionada pelo êxito comercial do Mercosul e de blocos subregionais em várias partes do mundo nos anos 1990. O então presidente colombiano Andrés Pastrana destacou na reunião que o comércio dentro dos blocos sub-regionais havia crescido 17% anuais no Mercosul e 14% anuais na Comunidade Andina no período de dez anos que antecedia a reunião. O comunicado conjunto indicou que, no médio e longo prazos, apenas seria possível uma inserção superior dos países sul-americanos na economia internacional com a incorporação permanente de inovações tecnológicas, que elevassem o valor agregado das exportações e melhorassem a competitividade regional.
Articular as agendas dos países da região era visto como a forma mais adequada para a negociação da ALCA, considerada naquele momento como inevitável. No imediato pós-guerra fria, os EUA eram vistos como a única potência global, a Rússia estava esfacelada e as grandes preocupações da comunidade internacional com a China eram seu crescimento demográfico e a pirataria de produtos de marcas ocidentais.
É supreendente lembrar que o presidente peruano Alberto Fujimori, poucos meses antes de abandonar seu cargo, declarou no encerramento daquele histórico encontro que se tratava da certidão de nascimento dos Estados Unidos da América do Sul. Talvez mais inusitado para os olhos de hoje seja que sobrenomes tão divergentes e aparentemente incompatíveis como De la Rúa, Bánzer, Cardoso, Lagos, Pastrana, Noboa, Jagdeo, Macchi, Fujimori, Venetiaan, Batlle e Chávez conseguissem dialogar em torno de uma agenda comum de interesse de todos os países.
Na década de 2000, estimulada pelo boom das commodities, a região viveu um período de relativa estabilidade política, crescimento econômico e distribuição de renda sem precedentes. Lula da Silva, Uribe, Kirchner, entre outros, mantiveram as conversas.
Nos últimos anos, com o fim da bonança econômica, todos os pilares da Operação Sul-Americana se fragilizaram. Os instrumentos de defesa dos direitos humanos se debilitam e a democracia tem perdido entusiasmo. O comércio intrarregional despencou, as exportações dos países sul-americanos se reprimarizaram e mercado de manufaturados da região foi ocupado pela China – não pelos EUA, como se imaginava em 2000. Alguns países passaram a se alinhar automaticamente à política externa dos EUA e a frágil estrutura de governança regional autônoma já não existe.
A ausência de institucionalidade de integração tem custado caro e o acervo da integração tem se perdido.
A ausência de institucionalidade de integração tem custado caro e o acervo da integração tem se perdido. A carteira de projetos regionais de infraestrutura que era atualizada sistematicamente pelos governos está abandonada desde dezembro de 2017. Outros instrumentos sul-americanos que apresentavam resultados satisfatórios em áreas com defesa e saúde foram desativados.
Sebastián Piñera convocou em março de 2019 a mais recente reunião presencial de presidentes da América do Sul. Compareceram sete mandatários que decidiram substituir a Unasul pelo Fórum Prosul. A justificativa apresentada nos discursos foi que a Unasul seria ideologizada (influência bolivariana), burocrática (tratado, regimento) e custosa (40 funcionários e orçamento anual de 11 milhões de dólares).
Após um ano e meio o Prosul tem tido dificuldade para mostrar a que veio. Foram convocadas algumas reuniões de altas autoridades para tratar do Covid-19, mas os altos representantes de alguns de seus principais países nunca compareceram. O fórum tem se resumido a declarações de parte dos países da região, sem ações práticas. Um dos poucos compromissos do Prosul era que o fórum seria presidido por um país a cada ano. O primeiro seria o Chile, que passaria a presidência para o Paraguai em março de 2020. O Chile pediu para que sua presidência se estendesse até dezembro e a presidente Iván Duque demandou que a Colômbia assumisse a próxima presidência no lugar do Paraguai.
Aparentemente, não estão dadas as condições para a continuidade da Operação Sul-Americana que permitiria que a região atuasse como terceira interessada na nova polarização entre EUA e China e construísse agendas comuns em áreas como desenvolvimento das regiões de fronteira, financiamento e garantias para o comércio intrarregional, saúde e defesa. A reunião de 20 anos atrás, porém, não pode ser esquecida.
Foto de krossbow en Foter.com / CC BY
Autor
Economista. Trabalha no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA (Brasília). Foi Diretor de Assuntos Econômicos da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL). Doutor em Integração Latino-Americana pela Univ. de São Paulo (USP).