Alguns analistas culpam o Ocidente, em particular a expansão da OTAN, por provocar a reação russa e a guerra na Ucrânia. John Mearsheimer da Universidade de Chicago, suscitou um amplo debate internacional, sustentando que a Rússia atuou porque o Ocidente ameaçou diretamente sua segurança e interesses vitais. Esta teoria ignora a forte responsabilidade de Moscou, a ideologia de Putin e seu desejo de alterar a ordem internacional. Neste contexto, a América Latina, que também seria afetada pelas consequências do conflito, deveria decidir de uma vez por todas de que lado está.
Nunca houve uma ameaça real à segurança russa
Entre 1999 e 2004, a OTAN se ampliou para incluir vários países da ex-esfera de influência soviética. A Rússia se opôs, mas aceitou, já que os novos membros não dividiam uma extensa fronteira com a Rússia, e Moscou se encontrava em uma posição debilitada. O ponto de não retorno se alcançaria em 2008, com a cúpula da OTAN em Bucareste. A declaração final afirmava que no futuro a Geórgia e a Ucrânia se tornariam membros da OTAN.
Os receios da Rússia eram infundados. A Declaração de Bucareste apoiava a futura solicitação da Ucrânia e Geórgia, mas também enfatizava a necessidade de discutir questões pendentes. A França e a Alemanha pararam a iniciativa precisamente para não alarmar a Rússia. Na verdade, a OTAN nunca ofereceu à Geórgia e à Ucrânia um plano de adesão e seu processo formal nunca teve início.
Em 2020, a OTAN reconheceu a Ucrânia como “sócio de oportunidades melhoradas”. Isto permite consultas políticas regulares, intercâmbio de informações, plataformas de interoperabilidade e exercícios conjuntos. A Finlândia, um país membro da União Europeia e que tem fronteira direta com a Rússia, goza do mesmo status. A Finlândia tem, além disso, um exército de 180.000 pessoas e compra regularmente equipamentos militares dos Estados Unidos. Devemos esperar uma invasão russa à Finlândia? Esperemos que não.
Promessas não cumpridas e tratados violados
Na conferência de segurança de Munique em 2007, o Presidente Putin referiu-se explicitamente às supostas garantias de não-ampliação da OTAN oferecidas em 1990 pelo então Secretário-Geral da OTAN Wörner. Entretanto, as palavras citadas por Putin foram retiradas do contexto e se referiam apenas à reunificação alemã.
Em 1990, em troca da unificação das duas Alemanhas, Gorbachev obteve uma garantia informal de não-expansão da OTAN. Documentos diplomáticos revelam que entre 1990 e 1991, o presidente estadunidense George H. Bush, Kohl da Alemanha, Mitterrand da França e Major do Reino Unido asseguraram a Gorbachev e seu Ministro das Relações Exteriores, Shevardnadze, que não haveria expansão da OTAN.
A versão do Ocidente é que estas garantias se referiam à União Soviética e não poderiam ser aplicadas à Rússia em anos posteriores. É uma justificativa talvez um tanto improvisada, mas é aceita por alguns analistas, assim como pelo próprio Shevardnadze. Em qualquer caso, isso seria suficiente para explicar a invasão à Ucrânia trinta e dois anos depois?
Putin violou os tratados assinados pela Federação Russa sobre a Ucrânia. Em 1994, com o Memorando de Budapeste, em troca de ceder o arsenal nuclear ucraniano à Rússia, Moscou se comprometeu a respeitar a independência, a soberania e as fronteiras da Ucrânia, bem como a se abster da ameaça ou do uso da força contra a Ucrânia. A Rússia não cumpriu nenhum de seus compromissos.
Revisionismo russo e causas complexas
Não é o ativismo da OTAN que explica a guerra da Rússia na Ucrânia, mas a forma como Putin decidiu gradualmente se opor a ela, dentro de uma concepção mais ampla de revisionismo e redefinição da ordem internacional liberal liderada pelo Ocidente.
Analistas russos confirmam este argumento. Andrey Sushentsov, do Instituto de Estudos Internacionais do Ministério das Relações Exteriores, observa que com a invasão russa à Ucrânia, a era da busca russa de seu lugar no mundo centrado no Ocidente terminou. Sergei Karaganov, do Conselho de Política Externa e de Defesa de Moscou, fala de uma estratégia russa de “utilizar vários instrumentos de política externa, inclusive militares” e de substituir o atual sistema de segurança euro-atlântico por um sistema euro-asiático.
O Ministro das Relações Exteriores Lavrov atacou a ordem liberal e acusou o Ocidente de arrogar-se um direito auto-perpetuador de remodelar países “não democráticos” de acordo com os padrões ocidentais, uma posição que ele chamou de “imperial e neocolonial”. As relações internacionais, acrescentou, estão passando por mudanças fundamentais e a era da dominação ocidental está chegando ao seu fim.
Mas as supostas ameaças à Rússia não estão no âmbito da segurança militar, mas no dos valores. A difusão da democracia, dos direitos individuais e o respeito à lei minam a ordem autocrática da Rússia. As elites russas fariam bem em se perguntar como é que tantos países anseiam por um futuro mais próximo do Ocidente e livre de Moscou.
América Latina é parte do Ocidente
As consequências de um conflito de longo prazo na Ucrânia afetariam significativamente a América Latina. O custo das matérias primas e alimentos a nível mundial crescerá, impactando o preço dos produtos manufaturados que a América Latina importa. A aceleração europeia rumo a uma energia e economia verde terá impactos mundiais, tanto no econômico como no político. Os Estados Unidos e a Europa procurarão aliados confiáveis e estáveis e a América Latina terá que definir seu lugar entre o Ocidente e os países autocráticos.
A América Latina é histórica e culturalmente parte do Ocidente. Os líderes continentais enfatizam os valores compartilhados com os EUA e a Europa, como democracia, respeito aos direitos humanos e ao direito internacional. Mas quando se trata de ação, a região está dividida. Nas resoluções condenando a agressão russa na ONU e na OEA, alguns países latino-americanos se abstiveram, negando assim seus próprios valores em favor de convenientes posturas ideológicas e de possíveis retornos econômicos e políticos.
A ocasião é propícia para retomar uma relação mais justa e vantajosa com o Ocidente e para equilibrar a crescente influência política, econômica e ideológica da China, cujas consequências permanecem duvidosas.
Cenários futuros
O Ocidente faria bem em buscar uma aproximação com Moscou após uma paz justa na Ucrânia. O Kremlin seria um parceiro importante na gestão da situação na Síria, Líbia, Afeganistão e na luta contra o terrorismo. Além disso, a Rússia seria um aliado chave para conter a China se ela se tornasse mais revisionista e assertiva. De fato, a cautela de Pequim em relação à Ucrânia poderia pressagiar tensões em Taiwan.
É o momento de repensar profundamente. O Ocidente deveria acabar com a retórica da decadência e das “duras críticas” e potenciar a coerência entre os valores que encarna e suas ações. A América Latina, por sua vez, deveria atuar consequentemente com os valores que proclama. Teria que tomar uma posição conjunta ao lado daqueles que defendem esses valores e não flertar com aqueles que os debilitam. Os valores moldam os interesses a longo prazo.
*Tradução do espanhol por Giulia Gaspar.
Autor
Professor de História das Relações Internacionais da Universidade de Udine (Itália) e titular da cátedra ad personam Carlos Saavedra Lamas em Relações Internacionais da Friedrich-Alexander-Universidade Erlangen-Nuremberg (Alemanha).