O que significa exatamente “inteligência artificial”? Comecemos pelo primeiro termo, “inteligência”. Um indivíduo, humano ou animal, é considerado inteligente, primeiramente, quando demonstra destreza para resolver problemas e superar obstáculos, de modo a produzir um resultado ou atingir uma meta previamente estabelecida, ou a capacidade de desembaraçar-se de problemas imprevistos. Em ambos os casos, trata-se de uma inteligência relacionada à chamada racionalidade técnica ou instrumental, pertencente ao reino dos meios.
Há, contudo, uma outra inteligência, que é da ordem dos fins. Essa é do tipo ético-político ou teleológico, também preocupada com a adequação dos meios aos fins, isto é, ela também possui o elemento instrumental; contudo, tão ou mais importante para essa inteligência é a própria validade dos fins. Merecem ser atingidos? Por quê? A que custo?
Retomaremos esse ponto a seguir. Vejamos agora o que significa o segundo termo da expressão “inteligência artificial”.
Sem muito esforço, ao pensarmos na noção de artificial, imediatamente vem à mente seu contraponto: “natural”. Assim, artificial seria tudo aquilo que não é natural. Porém, observando a questão mais atentamente, surge um novo problema: se natural é tudo aquilo relacionado ou derivado da natureza, existiria algo não natural, algo essencialmente artificial? Se estendermos a noção de natureza ao próprio universo, o que poderia haver de não natural, abstraída a metafísica? Nada. A não ser que pensemos em artificial como algo não diretamente produzido pela natureza, mas cuja produção, cuja existência foi mediada pela ação humana.
E, de fato, pensando bem, é precisamente esse o sentido de “artificial” no senso comum, que expressa a separação tácita entre humanidade e natureza, entre o sujeito que pensa e o mundo onde age, mundo objeto do pensamento e da ação do sujeito, o que inclui outros sujeitos convertidos em objetos. Essa ideia é tão característica da cultura moderna que parece mesmo natural! Mas ela não é comum a todos os povos e não se sustenta: não existe, de um lado, a natureza e o mundo natural e, de outro, o mundo humano e artificial. É um mundo só.
O que há é a capacidade humana de, sem transgredir as leis naturais, o que não é possível fora do mito, descobrir novas combinações das substâncias e potências naturais e, com isso, produzir coisas que não estavam dadas, transformando o mundo e a si mesma, para o bem e para o mal.
Portanto, “artificial” não se opõe a “natural”, sendo somente o natural mediado pela ação humana. Tendo isso em vista, quando é que se pode rigorosamente afirmar que esse tipo de mediação é propriamente inteligente? No sentido técnico ou instrumental, os exemplos são inumeráveis. No ético-político ou teleológico, nem tanto.
Uma das celebridades da chamada inteligência artificial são os algoritmos. Pensemos então na mediação algorítmica das plataformas digitais com base nos argumentos anteriores. Há aí inteligência em ação? Retomemos nossa definição de “inteligência”: em uma primeira apreciação, inteligência é a “destreza para resolver problemas e superar obstáculos, de modo a produzir um resultado ou atingir uma meta previamente estabelecida, ou a capacidade de desembaraçar-se de problemas imprevistos”.
Ora, nesse sentido, certamente os algoritmos demonstram uma inteligência notável. Entretanto, quem os criou? Quem é efetivamente o sujeito inteligente por trás dos algoritmos? Seus programadores? Certamente, pois é graças a sua própria inteligência que eles são produzidos. Mas estamos ainda no nível da inteligência técnica ou instrumental, seja no caso dos algoritmos, seja no dos próprios programadores.
Afinal, se pensarmos no segundo nível acima aludido da noção de inteligência, que denominamos ético-político ou teleológico, quem é o sujeito dessa inteligência, o sujeito que não elabora os meios, mas que estabelece a meta da ação como legítima e merecedora de investimento? Esse sujeito é movido por um propósito, por um desejo, por um fim. Ele tem o poder de pôr em ação os meios. Quem é esse sujeito? Os proprietários das plataformas digitais e seus acionistas. Qual é o seu propósito, seu desejo, seu fim? Ficarem mais ricos.
Ora, do ponto de vista desses indivíduos, a mobilização da inteligência artificial dos programadores e dos algoritmos, quando eficiente, é uma prova da sua própria inteligência. Dizemos que a inteligência dos programadores também é artificial, assim como toda inteligência concebível, na medida em que é mediada pela história inteira de mediações materiais e culturais que permitiram sua formação como programadores. Não nasceram assim.
Por outro lado, será que a ampliação dos capitais dos proprietários das corporações que controlam as plataformas digitais e de seus acionistas é efetivamente inteligente do ponto de vista do conjunto da humanidade e da própria natureza?
À luz de um conjunto de fenômenos contemporâneos alarmantes, dificilmente a resposta será positiva, como o colapso ambiental e a volta da fome ao Brasil, em boa medida resultado do crescimento da desinformação digital em rede, carregada de discursos de ódio, irracionalismo, misoginia, racismo, homofobia, negacionismo climático, recrudescimento de movimentos antivacina e, amarrando o feixe, do fascismo.
Não se trata, portanto, de um problema de ordem técnica, mas ético-política, que não pode se furtar a atualizar a crítica ao capitalismo. Pois o problema que ainda e mais uma vez incontornavelmente se coloca é a contradição entre o interesse público, que obviamente inclui a preservação da natureza, e os interesses corporativos. Pois o capital, que é como o sujeito inconsciente de todo o processo, possui uma inteligência artificialíssima no sentido de mobilizar recursos humanos e naturais para o seu próprio crescimento, que é seu único fim.
Ao mesmo tempo, isso tem se revelado o cúmulo da estupidez, para o conjunto da humanidade e da natureza, estupidez aqui entendida no sentido conjugado de não inteligência e brutalidade.
Esse quadro ilustra as tendências dominantes da nossa época. Se formos inteligentes, precisamos mudar o rumo.
Autor
Professor de Comunicação e Ciência da Informação da UFRJ. Coordenador do Centro Internacional de Ética da Informação na América Latina. Membro da Rede Nacional de Combate à Desinformação.