Em que medida os cidadãos podem desenvolver valores democráticos se sua vida cotidiana se desenvolve em contextos verticais e não democráticos por excelência? Nos últimos meses de 2022, a política em alguns países da região mostrou novamente sinais de instabilidade. Mas, além da gravidade, as crises políticas são essencialmente de, e entre, as elites políticas, e os cidadãos, em geral, pouco têm a ver com isso. Mas os efeitos de tais crises os afetam consideravelmente.
O caso mais emblemático é a crise no Peru, com a tentativa fracassada de Pedro Castillo de dissolver inconstitucionalmente o Congresso, sua consequente destituição e a ascensão de Dina Boluarte. Assim, o Peru teve seis presidentes em seis anos. Enquanto na Argentina, a Vice-Presidente Cristina Fernández, líder de facto da coalizão governante de turno, foi condenada a seis anos de prisão por administração fraudulenta e desqualificada para ocupar cargos públicos vitalícios. Embora isto não signifique necessariamente sua saída da vida política, é um sinal do início do fim da era kirchnerista.
No Brasil, a extrema direita que apoia o presidente Jair Bolsonaro saiu às ruas para rejeitar a estreita vitória de Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno. Enquanto Bolsonaro se negou a reconhecer os resultados até um mês após a eleição, depois que nenhuma instituição o apoiou, inclusive o setor militar.
No México, López Obrador e seu partido Morena lançaram uma série de estratégias formais e informais para enfraquecer as instituições que administram as eleições. Em um país onde a transição e a democratização se basearam essencialmente na criação de condições de independência e imparcialidade na gestão eleitoral, atacar midiaticamente os órgãos eleitorais e tentar modificar sua estrutura institucional sem diagnóstico e deliberação pode pôr em risco a viabilidade da democracia neste país. Apesar da gravidade de tais processos, estas crises têm se desdobrado até agora dentro dos canais institucionais.
A crise da democracia é das elites
As lamentações por vezes lacônicas da deterioração democrática na região se baseiam em uma concepção reduzida de tal. As competições entre elites partidárias se desenvolvem em contextos institucionais com eleições livres e justas. Mas os partidos políticos dependem cada vez mais de recursos estatais e menos de seus militantes, enquanto os representantes se ocupam mais com suas próprias agendas de grupo do que com assuntos que afetam a sociedade. E os poderes executivos respondem cada vez mais aos poderes de fato do que à cidadania.
As crises da democracia são, portanto, crises das elites. A maioria das pessoas são somente espectadores, pois sua vida cotidiana se desenvolve em contextos que têm pouco ou nada a ver com política e democracia. Além da desconfiança permanente com os políticos, a complexidade dos sistemas institucionais afasta os cidadãos da política, que eles vêem como uma atividade estrangeira. Segundo a Latinobarómetro, em 2020, mais de 70% das pessoas estavam pouco ou nada interessadas em política.
Soluções não ortodoxas à crise da democracia
As análises das democracias concentraram-se nos aspectos institucionais, nas relações entre os poderes formais estabelecidos, na dinâmica dos sistemas partidários e eleitorais, entre outros aspectos. Mas muito escassa a atenção à relação entre as práticas políticas e os entornos cotidianos da cidadania, e suas relações e percepções em relação aos componentes da democracia.
Em 1977, foi publicado na Inglaterra o Relatório da Comissão de Inquérito sobre Democracia Industrial, conhecido como “Relatório Bullock”, que analisava o estado das empresas no país, o processo de sindicalização dos trabalhadores e seus direitos de participação nas empresas. Publicado há mais de quarenta anos, o relatório pôs em primeiro plano o tema da democracia industrial e marcou o princípio de muitas experiências de democracia sindical e de relações entre setores econômicos em vários países europeus, como Suécia e Alemanha.
O relatório coloca na mesa que um sistema político democrático-representativo só pode funcionar eficientemente se estruturas verticais, como indústrias e empresas, também fomentarem práticas democráticas. A democracia industrial refere-se às possibilidades dos trabalhadores de influenciar, formal e informalmente, direta e indiretamente, o curso dos processos dentro de uma empresa, incluindo não apenas nas lideranças sindicais, mas também nas dinâmicas organizacionais e até mesmo os “outputs”.
No século XXI, as empresas dedicadas às novas tecnologias, mas não só estas, definem em grande medida o futuro de muitos processos políticos e sociais. Empresas como Apple, Microsoft, Google, Tencent, Facebook e IBM têm um impacto na economia mundial que alcança quase 40% de todas as transações, e o comércio eletrônico já é 5% do PIB mundial. Este é o mundo cotidiano de milhões de pessoas e, diante de um mundo novo, devemos pensar em novas formas de democracia.
Deter a deterioração implica deixar de manter artificialmente as instituições que a moldaram no século XX, mas que já não funcionam. Implica mudá-los ou substituí-los por outras que se adaptem a este novo mundo, que tem pouco a ver com o de algumas décadas atrás. Introduzir práticas democráticas nas relações verticais cotidianas não é uma tarefa fácil e pode ser contraproducente se não funcionar bem. Mas todos os mecanismos que permitem aos cidadãos ver uma concordância entre sua vida cotidiana e a política nas instituições podem melhorar a qualidade da democracia e aproximá-la novamente da política.
Desburocratizar a democracia é fundamental. Mas mesmo os mecanismos da democracia direta que pretendem solucionar a crise da democracia terminam, muitas vezes, aprofundando-a porque podem ser manipuladas pelas elites, como sucedeu com o processo constituinte fracassado no Chile ou com o uso instrumental que as elites têm dado aos referendos e plebiscitos.
Se quisermos salvar a democracia, devemos construir uma cidadania democrática. Caso contrário, seguiremos à mercê das elites políticas que sucumbem facilmente às tentações autoritárias.
Autor
Cientista político. Professor da Universidade de Guanajuato (México). Doutorado em Ciência Política pela Universidade de Florença (Itália). Suas áreas de interesse são a política e as eleições na América Latina e a teoria política moderna.