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Da “lista da Odebrecht” para a “lista dos vacinados”

Faz exatamente quatro anos que se debatia, na maior parte dos países da região, a existência de uma lista de beneficiários de subornos ou presentes da empresa brasileira Odebrecht. A história não se repete, mas rima. Em 2021, discutimos se há alguns sortudos que, ignorando todos os protocolos acordados, juntaram-se à lista dos vacinados contra a Covid-19.

A América Latina estava aguardando ansiosamente a chegada da vacina. Entretanto, à medida que as primeiras doses começaram a chegar, também começaram a aparecer as primeiras denúncias de irregularidades em sua distribuição e utilização. O processo de imunização nos lembrou mais uma vez que a falta de transparência e o manejo irregular dos recursos são uma longa sombra que sempre assombra a região.  A ausência de um processo claro, a opacidade e a detecção de certas anormalidades no acesso à vacina transformaram o processo de inoculação em uma nova dor de cabeça para os cidadãos latino-americanos.

Embora as primeiras doses tenham chegado há apenas algumas semanas, já existem vários países no subcontinente onde foram registrados casos de vacinação irregular de cidadãos. Em geral, estes casos estão direta ou indiretamente relacionados com o governo no poder. O uso de vacinas adquiridas com recursos públicos em benefício do círculo restrito de autoridades, ou o desrespeito aos cronogramas de vacinação atribuídos, foram registrados na Argentina, Equador, Colômbia, Peru e Chile.

Vacinação irregular

Apesar de liderar a taxa de vacinação a nível mundial, no Chile, 37 mil pessoas com menos de 60 anos de idade e sem morbidades foram vacinadas fora do tempo. Um terço dessas pessoas vive na região metropolitana. Entre elas se encontra o prefeito da comuna “La Florida”, Rodolfo Carter. Na Argentina, o ex-ministro da Saúde, Gines Gonzalez Garcia reservou 3000 vacinas “Sputnik V” para uso discricionário. O jornalista Horacio Vebitsky, apoiador do governo, anunciou pessoalmente que havia recebido a vacina, graças ao convite do ex-ministro. Da mesma forma, membros da família e amigos foram vacinados, o que levou à demissão do ex-funcionário.

O Peru foi o primeiro país a registrar a vacinação de funcionários que não tinham nenhuma relação com a equipe médica e da linha de frente na contenção do vírus. Nos testes da vacina “Sinovac”, realizados em 12 mil voluntários no país, verificou-se que cerca de 2 mil doses foram destinadas à vacinação de funcionários do governo peruano. Entre os afortunados estavam pessoas tão ilustres como o ex-presidente Martin Vizcarra, sua esposa e irmão – tudo fica na família -, a ex-ministra da saúde Pilar Mazzetti, a chanceler Elizabeth Astete, o núncio apostólico, reitores das universidades San Marcos e Cayetano Heredia, e até o médico da família do ex-presidente Fujimori. Na Colômbia, o jornalista e empresário Óscar Medina anunciou, através de suas redes sociais, que havia sido vacinado, graças ao hospital onde presta serviços.

O Equador é talvez um dos piores casos. No país andino, não apenas as autoridades e suas famílias foram vacinadas de forma irregular, mas o protocolo também foi ignorado pelo pessoal administrativo do hospital, líderes esportivos, tiktokers, um jornalista próximo ao governo atual e até mesmo um chef. Enquanto o pessoal de saúde que trabalhava na linha de frente e os idosos nos centros geriátricos aguardavam sua vez, outros avançavam no caminho da imunização. Rodrigo Paz, ex-prefeito de Quito e ex-presidente do time de futebol “Liga Deportiva Universitaria”, teria recebido a vacina no final de fevereiro. Dois conhecidos tiktokers, Salomon Doumet e María del Alma Cruz, anunciaram tranquilamente que haviam sido vacinados no início de março, graças à influência do pai do primeiro.

O fardo da corrupção

Na América do Sul, não é apenas o acesso às vacinas que constitui um problema.  Mais uma vez, temos que lidar com a corrupção, que não só está enraizada entre os funcionários do Estado, mas também faz parte da cultura dos cidadãos de nossos países.

Há alguns anos, o escândalo de corrupção da Odebrecht afetou quase todos os governos da América Latina. Seu impacto foi tão forte que levou à alternância no poder e entrou fortemente na agenda pública, tanto do ponto de vista da mídia quanto das autoridades judiciais. Embora funcionários do Estado e empresários privados tenham sido condenados como resultado deste esquema de corrupção, parece que não se aprendeu o suficiente. Hoje estamos diante de uma nova lista, a de vacinações irregulares, que é uma evidência dos maus hábitos que persistem na região.

Infelizmente, a lei do mais rápido parece ser a regra e não a exceção.  Vemos isso todos os dias nas notícias e nas redes sociais, quando um alto funcionário do governo, congressista, autoridade local, líder religioso ou líder sindical está envolvido em pagamentos indevidos por contratos, votos para aprovar leis ou para receber benefícios fora da lei. Mas também temos cidadãos que saltam a fila para realizar um procedimento, chefes que não pagam o que é devido a seus funcionários, ou trabalhadores que levam material de escritório para casa.

A naturalização da corrupção

A corrupção nos infectou até o núcleo. Naturalizamos comportamentos que violam a lei, e eles se tornaram parte dos códigos de conduta e estruturas para interpretar a realidade. Se nos olharmos no espelho e nos compararmos com nossos governantes, eles serão apenas um reflexo de como concebemos a política, o Estado e suas instituições. Isto não significa que a frase banal e sem sentido “se mudarmos individualmente, mudaremos o país” seja verdadeira, mas temos que ser conscientes de que, desrespeitando a lei, também somos co-responsáveis pela fraqueza institucional que aflige nossos países.

A Covid-19, desde seu início há um ano na América Latina, tem destacado não apenas a incapacidade dos sistemas políticos de nossos países para resolver problemas. Também nos mostrou que instituições fracas são o produto de uma cultura que legitima a corrupção e até a normaliza para sobreviver. Seus efeitos não se limitam à baixa confiança nas instituições, ao aumento do populismo ou à cascata de escândalos que ficam impunes. Talvez o mais grave de tudo seja uma cultura política que parece conceber o Estado não como um acordo para garantir uma vontade coletiva, mas sim como uma oportunidade para alcançar a vontade individual.

Foto de Juanpa Azabache

Autor

Doutorando na Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Altos Estudios Nacionales (Equador) e em Ciência Política pela Univ. de Salamanca.

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