“Nosso povo não realizará seu destino se não se organizar em partido”, afirmou Leonel Brizola, na Carta de Lisboa em junho de 1979, referindo-se à importância dos partidos para o exercício democrático da política. Logo após a anistia promulgada em agosto do mesmo ano, o Congresso Nacional aprovou a lei que autorizava o retorno do pluripartidarismo no Brasil. Em torno do efervescente debate de ideias e propostas, o Brasil começou a respirar democracia após anos de ditadura militar e o desafio passou a ser formar partidos que dessem voz a tantos silenciados por anos ou que não se sentiam representados no forçado bipartidarismo do período militar.
A liberdade de criação de partidos, no entanto, levou a uma fragmentação recorde nas eleições de 2018, com a eleição de deputados federais de 30 bancadas diferentes. Depois de sucessivas minirreformas eleitorais, uma emenda constitucional estabeleceu as novas regras para as eleições de 2022. Este breve histórico nos aponta o caminho da formação política e da organização partidária. Qual a cultura política que deriva do espírito (sempre Montesquieu) da nova legislação eleitoral?
Federação como manutenção de poder
Poderia ater a análise a aspectos louváveis da reforma, como a valorização da presença de mulheres e negros, com o estímulo de, uma vez eleitos, produzirem o dobro de recursos ao fundo partidário. Ou mesmo à decisão sensata de dar posse ao presidente em 05 de janeiro e aos governadores em 06 de janeiro do ano subsequente ao da eleição, e não mais no 01 de janeiro como até agora. Contudo, o que motiva a Ciência Política, em geral, e a vida partidária, em particular, é o resultado que terá a nova legislação na formação dos partidos brasileiros, e o quanto aí reside de efetiva contribuição à consolidação da democracia no país. Nesse sentido o mais relevante da nova legislação é o conceito de “federação partidária”.
Federação partidária significa que dois ou mais partidos podem se reunir em federação, a qual, após sua constituição e respectivo registro perante o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), atuará como se fosse uma única agremiação partidária. Segundo o TSE, a federação tem “o objetivo de permitir às legendas atuarem de forma unificada em todo o país, como um teste para eventual fusão ou incorporação”.
A federação, porém, é mais uma forma de manutenção de poder e controle, especialmente dos fundos partidário e eleitoral, e menos uma ferramenta de construção partidária. O compromisso será firmado verticalmente, no âmbito das executivas nacionais, sem considerar as diferenças locais e regionais. Eis o espírito desta regra da emenda à Constituição.
No entanto, a federação não é uma imposição legal. É decisão dos partidos políticos. Os partidos considerados grandes estimulam a federação como forma de cooptar os “melhores” nomes dos partidos ditos “pequenos”, robustecendo a sua legenda; já alguns pequenos encontram na federação o subterfúgio para continuarem existindo. Como exemplo, o PSDB e o PT propõem federação ao Cidadania e ao PC do B, respectivamente. Em nada a federação promove o crescimento partidário, antes apenas renova a força do caciquismo tanto no grande como no pequeno partido. Neste arranjo político os mesmos líderes tenderão a ser reeleitos.
A alternativa à federação de partidos
Em oposição a esse caciquismo, há uma alternativa. Enquanto o estatuto da federação objetiva a organização de chapas por meio de hierarquias internas, oferecendo à nova composição líderes já consagrados, alguns partidos tem rejeitado essa proposta, orientados pelo princípio da igualdade de condições para a disputa: as chapas congregam lideranças em ascensão que, de certa forma, contribuem para a renovação saudável da liderança do partido. Porém, os exemplos não são muitos.
A Rede Sustentabilidade de Marina Silva, assim tentou em 2018, mas não obteve êxito e agora busca participar de uma federação. O Avante, por sua vez, que superou em 2018 a cláusula de barreira, tentará novamente superá-la em 2022 sem aderir a uma federação. Para tanto, a informação que os dirigentes do partido fazem circular é a de que, na elaboração das chapas de deputados, há um conjunto de critérios que determina a vocação à formação partidária: a participação dos candidatos não eleitos nos mandatos dos que foram eleitos, e a partilha do fundo partidário observando o próximo pleito eleitoral. No entanto, os partidos tradicionais, -PT, MDB, PP, PSDB- esforçam-se por manter o controle sobre os partidos menores a partir da federação, uma vez que o vínculo terá a conformação de bancada por quatro anos, que é o tempo do mandato.
Não se pode desconsiderar também que a federação é uma decisão vertical, de cima para baixo, que não irá observar as peculiaridades regionais; instituída, definirá a orientação do partido também nas eleições municipais de 2024. Ou seja, os líderes que travam a disputa política fortemente nas cidades poderão ter que partilhar a mesma federação por deliberação superior, alheia aos seus objetivos locais. Muito diferente do que propõem os partidos que optam por enfrentar as urnas com autonomia e independência, sem recorrer à federação. Nestes últimos, os critérios de solidariedade partidária, com a finalidade de engajar as lideranças na construção do partido, priorizam a democracia interna e a perspectiva de sua vitalidade e renovação.
Para as eleições que se avizinham os partidos irão se apresentar à população brasileira no dia 31 de maio, quando encerra o prazo para a formalização de federações. A partir desta data, então, poderemos formar o nosso juízo sobre quais organizações priorizam o fortalecimento dos partidos políticos como desejava Leonel Brizola e como requer, mais do que nunca, a democracia.
Autor
Doutor em Ciências Sociais pela UNISINOS. Ministro interino da Educação (2005), secretário-executivo adjunto do Ministério da Justiça e coordenador do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (2007 a 2010).