Em uma de minhas visitas à Amazônia, subi de barco o rio Negro, de Manaus à pequena cidade de Novo Airão. Encontrei uma jovem, então com 29 anos, a chefiar o Parque Nacional das Anavilhanas. Giovanna Palazzi, nascida em São Paulo, longe da Amazônia, de ascendência italiana, apaixonou-se pelas Anavilhanas, o segundo maior arquipélago de ilhas fluviais do mundo, aos 14 anos, numa excursão de seu colégio. Decidiu, naquela viagem, que estudaria ecologia para poder trabalhar naquele sítio. Aos 28 anos, passou a chefiar o Parque de Anavilhanas e seus 300 mil hectares. O arquipélago de ilhas fluviais alongadas formadas pelos sedimentos de areia branca, trazidos das imediações do Monte Roraima, pelo rio Branco afluente do rio Negro. Esta breve historia tem dois exemplos. O primeiro, é da espantosa biodiversidade amazônica. O parque das Anavilhanas, uma área de conservação estratégica, tem uma enorme variedade de formações vegetais, típicas da floresta tropical úmida. É parte da paisagem florestal inundada. As árvores ficam com os troncos inteiramente cobertos pelas águas do rio durante o período de chuvas. Navega-se por entre as copas. As 400 ilhas aparecem apenas, no período da seca. As águas são escuras por causa dos taninos e óleos naturais que retiram das cascas das árvores na vazante e que lá estão para protegê-las de insetos e outros parasitas. Por isso não há mosquitos nas margens do rio Negro, o que o torna particularmente atraente aos turistas. É uma região de espécies que fazem parte da mitologia regional, como o boto-tucuxi e o boto-rosa, espécie de golfinhos de água doce. Foi esta paisagem mutante e exuberante, cheias de espécies quase míticas que construiu a impressão histórica de brasileiros e estrangeiros sobre a Amazônia. Uma terra de mistérios, riquezas imensas, um Eldorado desconhecido, cobiçado e temido.
Os brasileiros não se tornaram ambientalistas radicais. Passaram a valorizar a diversidade biológica da Amazônia, ao mesmo tempo em que começavam a conhecer seus incontáveis atrativos”
O outro exemplo desta história é da relação das novas gerações com a Amazônia. Aquela visão historicamente construída do Eldorado, que os militares, durante a ditadura, transformaram no “inferno verde” a ser conquistado para que o país pudesse ter acesso a suas riquezas, foi se dissipando, quanto mais conhecida se tornava a região. As fotografias expressionistas do fotógrafo Sebastião Salgado mostrando a tragédia humana e ambiental do garimpo de Serra Pelada, nos anos 1970, contribuiu para levantar a consciência de que a Amazônia estava em perigo. O arquipélago de Anavilhanas foi transformado em unidade de conservação pelo próprio regime militar, em 1981. Hoje, está na Lista de Zonas Úmidas de Importância Internacional (Sítio Ramsar) e é um sítio do Patrimônio Mundial Natural do Brasil reconhecido pela UNESCO. Quando Giovanna, hoje com 40 anos, se encantou com o lugar e decidiu se preparar para trabalhar na sua proteção, a visão dos brasileiros sobre a Amazônia já era outra. Não mais um Eldorado de riquezas minerais, ouro e pedras preciosas, mas um patrimônio de muito maior valor em biodiversidade e que deveria ser protegido da exploração predatória. Os brasileiros não se tornaram ambientalistas radicais. Passaram a valorizar a diversidade biológica da Amazônia, ao mesmo tempo em que começavam a conhecer seus incontáveis atrativos turísticos, ainda muito mal explorados.
Hoje, a maioria, mesmo sem ter visitado a Amazônia, deseja sua proteção e o desenvolvimento da região com respeito ao seu ambiente natural. Pesquisa do maior instituto de opinião pública brasileiro, o Ibope, fez um nítido flagrante da visão contemporânea dos brasileiros de sua floresta tropical úmida, no momento em que aumenta o desmatamento e o fogo criminoso devasta grandes áreas. Os brasileiros vêem a Amazônia como razão de orgulho nacional, 88% pensam assim e 95% dizem que preservá-la é essencial para se mantenha este orgulho. É quase unânime a opinião (94%) de que proteger a Amazônia é fundamental para a identidade do Brasil. Para 97%, a conservação da diversidade biológica amazônica é decisiva para a saúde do meio ambiente brasileiro e 94% concordam que é também essencial para a saúde ambiental global. A importância da Amazônia para a economia é reconhecida por 87% e 93% estão preocupados com o aumento do desmatamento ilegal na região. Por isto, 96% querem que o presidente aumente a fiscalização para evitar o desmatamento e 89% pedem que o parlamento brasileiro assuma o compromisso com o desmatamento ilegal zero e que o país e suas autoridades tenham tolerância zero com este crime. Mesmo entre os eleitores do presidente Bolsonaro, a maioria absoluta compartilha esta opinião.
Por que, então, o governo brasileiro tem hoje atitudes tão contrastantes com a opinião da sociedade de seu país? Há um descolamento entre governo e sociedade no Brasil. O presidente tem uma agenda que responde a interesses muito específicos de mineradores e produtores de baixa produtividade e de uma minoria compacta de seguidores fiéis e devotos de seus valores. Um presidente com mentalidade autoritária, que não quer ouvir todas as vozes da sociedade, mas apenas da parte dela que pensa como ele. O governo está começando a agir na Amazônia, para combater as queimadas e o desmatamento apenas por causa da pressão interna, política e social, e da comunidade global. O agronegócio exportador brasileiro tem se manifestado contra a omissão da política ambiental de Bolsonaro. Isolado, ele age, mas sem convicção de que esta é a opção correta.
Photo by lubasi on Trend hype / CC BY-SA
Autor
Sociólogo e escritor. Analista da rádio CBN. Últimos livros: "Presidencialismo de Coalizão: Raízes e Evolução do Modelo Político Brasileiro" (2018) e "O tempo dos governantes incidentais" (2020). Prêmio Literário Nacional Pen Clube do Brasil, 2018.