No seu recente e esclarecedor livro “O Brasil dobrou à direita: uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018”, meu colega Jairo Nicolau alerta que o atual presidente, antes de ser um fascista é, de fato, um “líder de direita popular” que não deve ser subestimado enquanto tal. Quando foi que, na história da república brasileira, a elite econômica, o “andar de cima”, teve a seu dispor uma liderança popular, declaradamente de direita, na chefia do executivo federal?
O mito da terceira via
Haveria espaço real para uma candidatura da “centro-direita democrática”? Ainda mais considerando que o único contraponto a Bolsonaro no horizonte é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, outra liderança popular de sinal trocado e não totalmente confiável para os interesses da elite? A polarização política do país em 2022 seria, assim, inevitável, podendo implicar alguma forma de ruptura institucional?
O argumento aqui é o de que os grandes bancos, fundos de investimento e grupos privados não estarão dispostos, facilmente, a abrir mão de Bolsonaro. As cartas de empresários pela democracia, incluindo a desautorizada pela FIESP, não convencem e tampouco obscurecem o total alinhamento destes setores proprietários com a pauta econômica levada a cabo pelo ex-banqueiro Paulo Guedes.
A burguesia sabe que tais pautas dependem não apenas do dispendioso apoio do “Centrão” no Congresso, mas também de algum grau de respaldo popular. Uma aceitação ou, pelo menos, resignação social, que a liderança de Bolsonaro já se mostrou capaz de prover com sua violenta e insidiosa retórica antissistema, via redes sociais e atos performáticos.
Não nos enganemos, a burguesia brasileira tem sua imagem refletida no desprezo de Bolsonaro pela democracia. Sobre o caráter autoritário da nossa burguesia, a literatura é abundante.
O grande, se não maior, sociólogo brasileiro, Florestan Fernandes já identificava, em seu clássico “A Revolução Burguesa no Brasil” (1974), o caráter autocrático da burguesia, na sua busca por combinar “desenvolvimento desigual interno e dominação imperialista externa”. Autocracia que teria se realizado plenamente, via a militarização e tecnocratização, durante a “Ditadura Empresarial-Militar” (1964-88). No dizer de Florestan “se já houve, alguma vez, um ‘paraíso burguês’, este existe no Brasil, pelo menos depois de 1968”.
Estaríamos vivendo uma nova fase do “paraíso burguês”, iniciada com o Golpe de 2016, protagonizado pelo então vice-presidente Michel Temer, velha raposa, que agora se apresenta como fiador de uma repentina conversão democrática de Bolsonaro?
A resposta parece ser um sim retumbante. A considerar a reforma trabalhista de Temer, que transformou a terceirização em regra; a Emenda do teto de gastos, que estrangulou a despesa pública; a retirada de Petrobras como operadora única do pré-sal; a reforma da previdência já com Bolsonaro, limitando severamente o direito à aposentadoria; a autonomia do Banco Central, seguida da criação dos “depósitos voluntários remunerados” para os bancos, reeditando o overnight; as privatizações em curso da Eletrobras, Correios e de empresas estaduais de saneamento; e, ainda, a flexibilização, para não dizer desconstrução, das políticas ambientais.
Aumento da polarização e eleições de 2022
Os avanços e aparentes recuos de Bolsonaro em seus arroubos antidemocráticos também sinalizam que ele projeta, para além do seu golpismo, chegar com força nas eleições de 2022, garantindo pelo menos a ida para o segundo turno. A apenas um ano das eleições, as possibilidades de um impeachment são cada vez mais remotas, ao mesmo tempo em que o avanço da vacinação e recuo dos casos e mortes por Covid-19 tendem a favorecer uma retomada econômica no próximo ano.
Com efeito, a estratégia bolsonarista parece hoje se mover, de um lado, buscando ampliar os seus 20% de fiéis eleitores – não por acaso o governo tenta, de todas as maneiras, garantir recursos para o “Auxílio Brasil”; e, de outro, mostrando-se confiável à covarde e autocrática oligarquia financeira.
Ao que parece, este tende a ser o plano A de Bolsonaro: sair vitorioso de um segundo turno, disputado de preferência com Lula, apostando na polarização. Uma nova ruptura democrática, como a ocorrida em 2016, entraria como plano B, no caso de derrota no segundo turno, em um ambiente abertamente conflagrado.
O tempo para uma candidatura de “centro” ou “direita democrática” está também se esgotando, o espaço para tanto tende a se fechar na esteira da polarização política, tornando improvável uma “alternativa” viável eleitoralmente. Embora alguns setores do “andar de cima” possam vir a se aproximar da candidatura Lula, a tentação da elite de sepultar de vez qualquer perspectiva de conciliação com o “andar de baixo” deverá prevalecer.
O cenário é, pois, de crescimento da polarização no próximo período. Para qual dos pólos a balança política irá pender, dependerá também da capacidade do campo progressista de sair da defensiva. Conseguindo ir além do “fora Bolsonaro” e sendo capaz de aglutinar forças em torno de um convincente contraponto ao ultraneoliberalismo vigente. Tomando de volta a bandeira antissistema para mirar menos a classe política e mais os seus senhores, donos da banca financeira.
Caso contrário, se a esquerda e centro-esquerda não estiverem à altura deste desafio, é sempre bom lembrar que, na política, não há espaço vazio e o lugar de “oposição” a Bolsonaro poderá, neste caso, se deslocar para a tal “centro-direita democrática”. Seria a primeira vez, desde a redemocratização, que ocorreria uma polarização fake; neste caso, mais ao gosto da burguesia do que do farsante e infame presidente.
Autor
Cientista Político. Professor da UNIRIO e da PUC-Rio. Coordenador do Instituto Mais Democracia. Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ (atual IESP/UERJ).