Na quinta-feira 11 de setembro de 2025, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) condenou ao ex-presidente Jair Bolsonaro a 27 anos e 3 meses de prisão, por tentativa de golpe de Estado, tentativa de abolição violenta do Estado de Direito, organização criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Esta é a primeira vez que um ex-presidente do país foi condenado por crimes contra o Estado Democrático de Direito estabelecidos pela Constituição de 1988.
A condenação de Bolsonaro teve imediato impacto internacional. The New York Times tomou uma clara posição, afirmando que “o Brasil teve sucesso onde os Estados Unidos falharam”. Por sua parte, o jornal britânico The Guardian manifestou que Bolsonaro foi sentenciado a “27 anos de prisão por liderar uma conspiração criminosa para anular as eleições de 2022 e ‘aniquilar’ a democracia por meio de um golpe”. O mundo assistiu ao desfecho de uma ‘trama golpista’ que, para muitos, era previsível e esperado, mas que para tantos outros seria a materialização de um ‘regime de exceção’ instalado no país sob o comando do Poder Judiciário.
Não há dúvidas de que o Brasil permanece politicamente polarizado, embora com uma significativa diminuição do exacerbado e tenso clima político de alguns meses atrás. As manifestações em apoio a Bolsonaro cada vez mais se reduzem ao círculo de apoiadores arregimentados pelas igrejas evangélicas lideradas, especialmente, pelo pastor Silas Malafaia. Nas últimas manifestações em São Paulo se contabilizaram não mais que 40 mil apoiadores. Inclusive, após a condenação, não se registraram mobilizações massivas nas ruas em apoio a um ‘injustiçado’ ex-presidente; ninguém foi à porta de quarteis, como outrora, para pedir ‘intervenção militar’. Só os mais ativos deputados federais bolsonaristas foram às redes sociais para demonstrar a sua indignação, capturando a atenção da sua ‘bolha’ virtual de aderentes.
É justamente este ‘ambiente’ político e social pós-condenação do ex-presidente que permite refletir, em especial, sobre a eventual necessidade da ‘desintoxicação política’ do país, algo que desde o ano de 2022 vinha se dizendo. Naqueles anos se aludia aos prejuízos da polarização política e ao acirramento da intolerância, aos discursos políticos agressivos, à violência política em geral. O país se compreendia como ‘intoxicado’ pela irracionalidade da polarização, pela incapacidade de refletir em um espaço público que precisa, por vezes, de consensos e de escutar vozes diferentes. De fato, a polarização capilarizou em todos os espaços da sociedade, gerando conflitos e ferindo amizades. No entanto, estes episódios que levaram à condenação do ex-presidente Bolsonaro, cujo corolário seria a manifestação violenta em Brasília do dia 8 de janeiro de 2023, sugerem que a ‘intoxicação’ política e cultural brasileira não se limita a uma polarização nas disputas eleitorais. Esse ‘momento populista’ tem como substrato uma caracterização sociocultural de média e longa duração que merece ser destacada para entender a ‘intoxicação’ atual.
Não se deve negligenciar a existência de uma herança antirrepublicana no país, atrelada à internalização generalizada do autoritarismo político e a uma associação questionável da figura social do militar, do uniformizado, com os atributos do ‘cidadão de bem’. A vida civil e democrática passa pela necessária superação de uma herança sociocultural forjada na ditadura cívico-militar dos anos de 1960 e 1970. Seria ela quem teria criado termos fartamente repetidos hoje, como ‘vagabundo’ ou ‘bandido’ para nomear dissidentes, críticos ou opositores. O país avançou pouco na elaboração de uma cultura política que afaste a herança autoritária e militarista, e a todo o seu repertório antidemocrático, racista, preconceituoso.
Importa compreender que, na atualidade, Jair Bolsonaro, na prática, mantém forte influência em um 20% do eleitorado, aquele ‘núcleo duro’ de aderentes integrado por pessoas basicamente conservadoras e que preexistiam ao seu aparecimento público e midiático. Bolsonaro, na realidade, não liderou um amplo movimento de massas organizado de direita e extrema-direita, com ideologia e objetivos em torno da sua figura; tão só representou a síntese de um processo sociocultural que teria sido instrumentalizado pelos detentores históricos do poder econômico e político. Estes poderão achar, brevemente, um substituto à altura dos novos desafios históricos.
Tampouco se deve negligenciar o papel nocivo e ‘tóxico’ que o uso das redes sociais virtuais e a desinformação passaram a desempenhar na elaboração de ideias e conceitos em uma sociedade que se politizou rápida e fragilmente nos últimos anos. As estratégias políticas em linguagem de ‘TikTok’, as ‘fake-news’ e a circulação de falsas imagens atribuídas a origens duvidosas substituíram, por completo, a prática do debate político e de ideias, funcionando como uma ficção com capacidade de se instituir em verdade. As pessoas passaram a assumir como válidos conteúdos mentirosos e falsos a cambio de um sólido pertencimento a um grupo social e político; conteúdo que explora os contrastes culturais e o decorrente sentimento de aversão e ódio. Desintoxicar uma sociedade que se politizou com as redes sociais virtuais requererá, certamente, de muito esforço.
Por último, importa compreender que o ‘bolsonarismo’ é mais constituído por ‘bordões’ e frases de efeito do que por um compendio sofisticado de ideais políticas. Estas aludem, em muitas circunstâncias, ao ambiente sociocultural e cotidiano vivenciado nas igrejas evangélicas mais influentes no país. A referência política à presença de Deus tal qual um ator político que teria escolhido um líder e um grupo de cidadãos capazes de comandar os destinos do país é um claro exemplo de como o espaço público possui, de fato, uma ‘matriz antissecular’ quando se trata do debate político e da vida pública democrática. Fora a liberdade de culto do país, tem que se assumir que a influência da atuação das igrejas evangélicas mais poderosas vem minando, há décadas, a laicidade desejada de toda sociedade política, ‘intoxicando’ mentes e corpos com um repertório religioso que não necessariamente é compatível com o esperado de uma República moderna e pujante.
Por isso, com Bolsonaro condenado, e a sua prisão prestes a ser decretada, um novo ambiente político parece se iniciar. Talvez a insistente polarização não continue ocultando uma necessária desintoxicação política do país, superando a herança autoritária persistente, entanto incorpora laicidade ao sistema político. Simbolicamente, a prisão de Bolsonaro poderá representar o fim dessa herança e um passo mais na secularização da sociedade política.