No mês passado, no Equador, o governo do presidente Daniel Noboa apresentou um projeto de lei para combater a desnutrição infantil. Essa lei poderia ser um instrumento necessário para que o governo equatoriano agisse com força para resolver esse problema social crônico no país. Entretanto, da forma como está, a lei é mais um passo em direção à institucionalização da influência corporativa sobre a política de saúde e nutrição no Equador.
Desnutrição infantil e riscos à saúde na região
A desnutrição infantil crônica é um problema de saúde pública. Um relatório recente da UNICEF mostra a escala do problema da desnutrição infantil em nível global. De acordo com o relatório, uma em cada quatro crianças com menos de cinco anos de idade (ou seja, mais de 180 milhões mundialmente e 5 milhões na América Latina) sofre de pobreza alimentar infantil. Os países de renda média sofrem de uma dupla carga nutricional (uma manifestação simultânea de subnutrição e obesidade). Esse é o caso do Equador, onde uma em cada quatro crianças com menos de cinco anos padece de desnutrição crônica e, ao mesmo tempo, mais da metade da população adulta está com sobrepeso e obesidade.
Influência corporativa nas políticas de saúde e nutrição
As dimensões sociais, políticas e econômicas são cada vez mais reconhecidas como determinantes da saúde. Mais recentemente, foi reconhecido o papel dos interesses corporativos no ciclo da saúde e da doença. Os determinantes comerciais da saúde abrangem três dimensões: 1) produtos nocivos à saúde (como alimentos e bebidas ultraprocessados); 2) práticas comerciais, de mercado e políticas que são usadas para vender esses produtos e garantir um ambiente regulatório favorável às empresas (e mais prejudiciais à saúde); e 3) um ambiente de economias orientadas para o mercado e a globalização, que facilitam o uso dessas práticas nocivas em todo o mundo.
Não é de surpreender que o poder sobre os sistemas alimentares esteja cada vez mais concentrado em um punhado de empresas multinacionais de alimentos e bebidas. As 10 maiores empresas globais de alimentos e bebidas controlam 80% do mercado de produtos alimentícios, com lucros anuais superiores a US$ 100 bilhões. Elas obtêm a maior parte de suas receitas com a venda de alimentos e bebidas altamente processados. Esse oligopólio exerce uma grande influência sobre as dietas e a nutrição de crianças e adultos em todo o mundo. Nesse contexto, não é de surpreender que os governos da América Latina estejam tentando regulamentá-lo em suas legislações nacionais, como é o caso da lei recentemente aprovada que regulamenta o direito humano a alimentos nutritivos, suficientes e de qualidade no México.
A expansão da influência corporativa no Equador
Ao contrário dos esforços globais e regionais para limitar a influência dos interesses corporativos nas políticas de saúde e nutrição, os três últimos governos do Equador tomaram medidas na direção oposta. Em um estudo recente, demonstramos como os interesses privados estão se tornando cada vez mais institucionalizados na política pública; e mostramos as mudanças que permitem que as empresas promovam suas marcas, obtenham benefícios fiscais, influenciem as decisões de política pública, estabeleçam prioridades, aloquem recursos e determinem como a estratégia de desnutrição infantil do país é implementada.
Seguindo a estrutura conceitual de Bennet et al., conseguimos identificar como o setor de alimentos e bebidas ultraprocessados cooptou a “sociedade civil” por meio de grupos de fachada da indústria, como a REDNI, e obteve participação direta em agências governamentais para combater a desnutrição infantil (em detrimento de entidades estabelecidas, como o Ministério da Saúde Pública -MSP). Nesse esquema, o setor privado cooptou efetivamente o mandato do governo para estabelecer e monitorar políticas de nutrição e saúde.
Novo governo, mesma estratégia
A recente mudança de governo parece ser mais uma continuação desse esquema. Essa é a única maneira de explicar a introdução de um projeto de lei que claramente expande e institucionaliza um papel de destaque para o setor de alimentos e bebidas. O texto da lei deixa de lado o papel constitucional fundamental do Ministério da Saúde (garantir o direito à saúde da população). Essa mudança pode levar a uma duplicação de ações e a um uso inadequado dos talentos humanos existentes ao não fortalecer a equipe do MSP.
Além disso, a lei menciona explicitamente a promoção de benefícios fiscais para entidades privadas. O artigo 5 detalha que políticas tributárias, tarifárias e outras políticas fiscais devem ser adotadas para incentivar o setor privado a gerar ações e contribuições. Como um todo, essa proposta tem sérias limitações em sua articulação com os princípios estabelecidos no marco legal existente, incluindo a constituição de 2008 e outras leis, como as leis de soberania alimentar e de saúde do Equador.
Desvendando os interesses corporativos
A crescente influência do setor de alimentos e bebidas levou entidades como a UNICEF a estabelecer diretrizes claras para limitar seu papel. No caso do Equador, a colaboração cada vez mais estreita entre o setor de alimentos e bebidas e o governo nacional levanta sérias preocupações sobre a integridade e a transparência das políticas destinadas a combater a desnutrição infantil crônica. É necessário criar mecanismos para limitar a influência da indústria nas políticas de nutrição e saúde e, ao mesmo tempo, melhorar os mecanismos de transparência e prestação de contas.
Há um precedente no marco legal atual que proíbe que acionistas de bancos e dos meios de comunicação possuam ações em empresas de ambos os setores. Além disso, a lei restringe a troca de informações e as portas giratórias entre entidades públicas e o setor bancário, e determina que as iniciativas de responsabilidade social não podem ser usadas para promover sua marca, produtos ou serviços. Em abril passado, uma coalizão da sociedade civil conseguiu revogar o decreto 645 (que a partir de 2023 reduziu os impostos sobre cigarros, bebidas alcoólicas e bebidas adoçadas com açúcar). Ambos os precedentes legais podem orientar o debate sobre a lei proposta na Assembleia Nacional, com o objetivo de reduzir a influência do setor de alimentos e bebidas na política nacional de nutrição e saúde.
Autor
Professor Associado do Departamento de Promoção e Política de Saúde, Escola de Saúde Pública e Ciências da Saúde, Universidade de Massachusetts Amherst, EUA.
Nutricionista pela PUCE e Especialista em Saúde Pública pela USFQ, diplomada em Políticas Públicas pela FLACSO. Coordenou projetos de saúde reconhecidos pela OPAS e trabalhou como consultor internacional. Atualmente é professor da PUCE, com foco em nutrição comunitária e saúde pública.